Ilustração: João Grego

Uma nova legislação para lidar com notícias falsas pode turbinar a censura e prejudicar ainda mais o eleitor que tenta obter informações sobre seus candidatos

A influência de notícias falsas nas eleições dos Estados Unidos e da França, além do grande alcance de mentiras divulgadas por grupos militantes no Brasil dispararam um alarme no judiciário. O ministro Luiz Fux, ao assumir recentemente a presidência do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), disse que transformará o combate às fake news numa marca. A depender do caminho escolhido, essa marca pode ser a da censura.

Quase ninguém – ao menos publicamente – defende a propagação de notícias falsas. Não serei eu a fazê-lo. O problema é que muitas das alternativas de regulação podem causar mais dano à liberdade de expressão do que esclarecimento ao leitor. Vide trecho incluído no apagar das luzes da mini-reforma eleitoral aprovada pela Câmara em 2017. O texto obrigaria plataformas como Google Facebook e Twitter a derrubar um conteúdo denunciado como falso em 24 horas a partir de uma simples notificação, sem nenhuma análise. O dispositivo foi vetado após mobilização da opinião pública. O autor, deputado Áureo (SD/RJ), já havia acionado a justiça ao menos quatro vezes para retirar críticas contra ele da internet.

Antes mesmo de assumir o TSE, Fux já estava por traz da criação um grupo de trabalho contra fake news composto por membros da Polícia Federal, do Ministério Público e do TSE. Está na pauta o início de uma força tarefa e a aprovação de uma lei específica sobre o tema antes das eleições. Já foram acionados para ajudar nessa empreitada o Centro de Defesa Cibernética do Exército e a Agência Brasileira de Inteligência (Abin).

O problema mais óbvio desse esforço é saber quem definirá o que é verdade e o que é mentira dentro de conteúdo divulgado na internet. Polícia Federal, Exército e Abin não parecem bons candidatos a participar de qualquer etapa desse processo. Existem, é claro, falsidades claramente verificáveis, mas boa parte das ações de políticos na justiça tentando remover conteúdo do ar alega difamação e está sujeita a interpretações divergentes. Nestes casos, o que a sociedade menos precisa é de uma tropa de combate às fakes news sujeita a influências de ocasião. Como define a advogada Taís Gasparian em artigo no Dissenso.org, “o que é a censura, senão a avaliação e controle de um conteúdo, segundo um critério moral e político, e seu banimento do conhecimento público?”. O perigo de uma nova legislação é que, se ela delegar o poder de dizer o que é fake news ou não, poderá estabelecer uma nova categoria de censores. Classifique uma notícia duvidosa como fake e garanta o direito de censurá-la.

E não é que já não tenhamos instrumentos para lidar com o problema. A legislação no Brasil para combater difamação e para requerer reparação por crimes contra a honra funciona de maneira muito rápida na esfera eleitoral, e, frequentemente, a favor do reclamante. Se há algum exagero nas decisões, aliás, é no lado do excesso de supressão de informações. No último relatório do projeto Ctrl+X, no qual monitoramos pedidos judiciais para remover conteúdo da internet, analisamos 3 mil casos do tipo. Em dois terços deles, os juízes atenderam aos pedidos de retirar conteúdo do ar. O fato de que uma medida extrema como essa, que priva a sociedade de informações, seja tão comum nas decisões nos mostra o tamanho da ameaça à liberdade de expressão no Brasil.

A rapidez do Judiciário em produzir liminares para retirar informações da web, por sinal, está por trás de diversos casos recentes de intimidação da imprensa e censura, como a proibição à Folha de S. Paulo e O Globo de publicarem dados de um processo relacionado a Marcela Temer, a perseguição de repórteres da Gazeta do Povo que publicaram o salário de juízes no jornal, ordem judicial para que o blog Nélio Brandão, do Mato Grosso do Sul, não pudesse fazer críticas ao Ministério Público, a retirada de matérias do Portal 180 graus denunciando esquema de corrupção entre Ministério Público e Tribunal de Contas do Piauí, entre muitos outros casos. São tantos que a revista Pensamento resolveu fazer uma edição especial sobre eles. O que têm a ver com notícias falsas? Quase 70% dessas ações para retirar conteúdo que contamos no Projeto Ctrl+X alegam que houve difamação do político, do empresário ou da pessoa notória.

Quando esses casos sobre difamação chegam à Justiça eleitoral, o juiz normalmente decide em poucos dias, pressionado pelo alegado perigo de dano à campanha em curso, se determinado conteúdo pode ser considerado difamatório a um candidato e se pode ser retirado. É comum que, sem a clareza sobre a veracidade ou não de uma denúncia publicada, o juiz decida provisoriamente por preservar o candidato alegando o perigo à eleição. Há, do outro lado, o perigo pouco visto de privar a sociedade de uma informação importante para decidir seu voto em determinado candidato.

Como já temos normas para lidar com isso que normalmente são lidas em benefício de quem pede retirada do conteúdo, a ênfase na criação de uma nova legislação e a mobilização de Ministério Público, Polícia Federal e até Exército nesse esforço leva a crer que exista o desejo de criar algum tipo de fast track ou o estabelecimento de monitoramento permanente de alguns temas na política, ao estilo do que a Abin já faz em redes sociais. Isso pode se revelar extremamente prejudicial ao direito de informação, à privacidade e à democracia em geral. Afinal, se com a legislação existente já temos inúmeros casos de censura e cerceamento da liberdade de expressão, o que esperar de futura norma “mais rígida” sobre o tema?

Há ainda um segundo problema: o direito à liberdade de expressão impõe o dever de não mentir? A pergunta é muito mais complexa do que sugere uma primeira leitura, mostra este ótimo artigo do professor Ronaldo Porto Macedo Júnior também no Dissenso.org. Usuários do Twitter recentemente responderam de forma inusitada a essa questão após a tentativa do governo francês de aprovar normas restritivas contra a liberdade de expressão para conter fake news. A hashtag #InventeDesFakeNews (invente notícias falsas) ficou entre os assuntos mais comentados, com invenções que iam de executivos doando dinheiro para reduzir a dívida da França até a ressurreição de cantores mortos.

Soluções democráticas para os riscos das notícias falsas passam por mais informação, e não menos. São plataformas de checagem já criadas pela sociedade civil, jornalismo de qualidade e isento, a identificação clara e a transparência sobre quem está pagando publicidade on-line de candidatos, programas de media literacy para ajudar a população a distinguir enganação de notícia, etc. Retirar das mãos da sociedade o poder de decidir o que é verdadeiro ou falso e repassá-lo a algum grupo de sábios, como diria Élio Gaspari, tende a prejudicar nossa trôpega democracia. Nada contra nossos serviços de polícia e investigação terem instrumentos para identificar redes de robôs compradas por políticos e usadas com o objetivo de interferir nas eleições – há indícios, aliás, de que boa parte dos candidatos a presidente dos maiores partidos fizeram isso nas eleições de 2014 sem serem incomodados. Mas é bom que a atuação deles pare por aí.

Tiago Mali

Tiago Mali trabalha na Abraji onde é o coordenador dos cursos da entidade e do projeto Ctrl+X, que mapeia censura na internet. Formado pela PUC-SP, com pós-graduação na Universidade de Georgetown, foi repórter, editor e redator-chefe em uma série de veículos, como a Revista Época, a Revista Galileu e as páginas da ONU do PNUD no Brasil.