Ilustração: Caio Borges

O direito à liberdade de expressão impõe o dever de não mentir ou dizer a verdade?[1] O tema tem sido tratado com certa ambiguidade pela doutrina e jurisprudência brasileiras. Ora se supõe que existe um dever de veracidade por parte do emissor de um conteúdo expressivo, ora se entende que a verdade não faz parte deste dever. Um exemplo paradigmático e sempre lembrado se refere à condenação do negacionismo (a negação histórica  da barbárie nazista) discutido no caso Ellwanger, que dividiu o plenário do STF em 2003. Ora se supõe que autores têm liberdade para interpretar fatos históricos. Um exemplo recente (2015) se refere à liberdade reconhecida pelo STF aos biógrafos para escreverem a sua versão da história de alguém (ADI 4.815 DF).

A jurisprudência e teoria do direito mais liberal dominante nos EUA desde há muito têm entendido que a liberdade de expressão é incompatível com o dever de dizer a verdade e com a possibilidade de se censurar a mentira. Mesmo na tradição do direito alemão, menos liberal e fortemente impactado pelo nazismo, tem-se notado algumas modificações importantes acerca da vedação do negacionismo (cfr. Dieter Grimm, The Holocaust Denial Decision of the Federal Constitutional Court of Germany, in Ivan Hare, James Weinstein-Extreme Speech and Democracy-Oxford University Press, 2009, pp. 557-561).

O tema é amplo e não envolve apenas a complexa questão da verdade, mas principalmente os efeitos da intenção de iludir e mentir. Uma das novas dimensões deste tema tem surgido nos debates sobre as formas de controle do assim chamado “fake news” (literalmente: notícias falsas). É importante notar que, se por um lado, o problema não é novo, visto que notícias falsas sempre existiram, por outro lado, o seu impacto e a forma como ela pode afetar a própria democracia se alteraram profundamente com a expansão e disseminação das redes sociais e comunicação por meio eletrônico.

Se no passado a famosa veiculação da notícia sobre a invasão de marcianos nos EUA, feita por Orson Welles, pode gerar certo pânico e produzir, como consequência, uma saudável desconfiança do público com relação a tudo que podem encontrar nos jornais, por outro lado, há estudos indicando que a manipulação deliberada e organizada da mídia pode ser tido impacto relevante nas recentes eleições dos EUA e França. Também em eleições brasileiras este fenômeno foi verificado, bastando lembrar da ampla divulgação (ainda que em tempos de menor capacidade de disseminação de informações) de falsa notícia sobre as intenções do então candidato a prefeitura de São Paulo (1984), Fernando Henrique Cardoso de incluir maconha na merenda escolar das escolas públicas municipais.

Na Alemanha foi aprovada recentemente nova legislação sobre fake news.  Conforme aponta Ricardo Campos, segundo a nova legislação, “Quanto ao mecanismo de sanção, redes sociais, como Facebook, Twitter e Youtube terão de apagar “conteúdo manifestamente criminoso” dentro de 24 horas após a indicação. Em casos menos claros é fornecido um período de sete dias; dada violação pela redes sociais desse mandamento, as penas podem chagar em até 50 milhões de euros.” (Transformação social motivou nova lei alemã de internet, 7/9/2017 ConJur – Opinião)

Há várias dificuldades e problemas relacionados à reflexão sobre as formas de regulação do fenômeno do fake news. O primeiro problema se refere à própria dificuldade de se definir com clareza o que vem a ser fake news (dificuldade semelhante existe com respeito ao conceito de “discurso de ódio”).  Evidentemente num caso paradigmático, fake news pode significar uma notícia forjada de forma deliberada para enganar uma audiência e, desta forma, gerar algum tipo de vantagem econômica ou política indevida. Contudo, há casos limítrofes de difícil enquadramento, como por exemplo, websites que veiculam informações parcialmente distorcidas, descontextualizadas, enviesadas ou dúbias. Por vezes os emissores também recorrem a criação de manchetes que não traduzem o conteúdo das matérias, mas que servem de isca para leitores desavisados.

Um segundo problema se refere à forma de divulgação. Durante as últimas campanhas presidenciais na França e EUA foi constatado o uso de diversos robôs eletrônicos que se encarregavam de multiplicar o impacto da notícia falsa maximizando o seu efeito enganoso. Neste caso, o que se viu, portanto, não foi a ação individualizada, circunscrita de comunicação de notícia falsa por um particular, mas a montagem de uma estratégia de comunicação de massa de informações falsas com objetivos políticos violadores do princípio democrático.

Um terceiro e clássico problema diz respeito à própria definição do que é verdade e falsidade, bem como os contextos nos quais se exige um especial cuidado com os critérios científicos de verdade. Sabemos que uma interpretação de um fato histórico pode gerar desacordo na comunidade de historiadores e não seria sensato proibir a publicação de interpretações discordantes dele. Ao mesmo tempo, por um lado, não parece razoável a ninguém proibir a divulgação de que Deus fez o mundo em sete dias apenas porque tal explicação astronômica não encontra respaldo na ciência moderna. Por outro lado, acreditamos que a liberdade de expressão não autoriza um médico contratado para cuidar de uma cardiopatia a afirmar que o seu paciente deveria fazer um tratamento exclusivamente a base de orações e consultas a oráculos.

Em quarto lugar, ainda não sabemos com certeza quais serão as transformações que tal fenômeno pode gerar no mercado de ideias e nos processos democráticos. Se, por um lado, algumas pesquisas preliminares apontam para a grande importância das redes sociais como fonte primária de informação politica em países como EUA, por outro lado, novas investigações apontam para o fato de que uma grande parcela daqueles que leem e buscam informações nas redes sociais procuram também checar a sua veracidade consultando outras fontes de notícias sempre que a informação pode ter grande impacto. Ademais, a mesma velocidade de disseminação de informação falsa parece estar presente na sua denúncia e desmentido. Isto parecer ser ainda mais verdadeiro conforme se formam estruturas mais organizadas de disseminação de informação no campo político, onde o que um político faz é monitorado por seus concorrentes.

Recentemente observamos o surgimento de outros mecanismos de controle da confiabilidade das informações que circulam na internet e redes sociais. Um deles foi o mecanismo de qualificação das informações que circulam por estes meios eletrônicos. O Facebook, por exemplo, criou um mecanismo pelo qual marca informações que foram contestadas por terceiros (“Disputed by 3rd party fact-checkers”) de modo gerar uma prontidão de acautelamento por parte do consumidor da notícia. Mecanismo semelhante será colocado em prática pelo Google Chrome para chamar a atenção dos usuários que buscam informação através deste navegador. A criação de listas de websites divulgadores de fake news já tem sido feita e pode também prestar um serviço relevante na mitigação dos efeitos deletérios da disseminação de notícias falsas. É certo, contudo, que novos sites são criados diariamente, tornando impossível a listagem completa daqueles que se dedicam a disseminar fake news. Ademais, novos problemas já estão prenunciados com respeito aos limites e deveres destes provedores e sistemas de comunicação para fazer tais verificações.

No Brasil, o debate sobre o tema começa a ganhar importância e alguns projetos de lei já começam a sugerir soluções pouco democráticas para tratar do tema, impondo algum tipo de censura ou dever de falar a verdade, o que pode representar uma nova ameaça ao ainda pouco consolidado pensamento nacional sobre a liberdade de expressão.

A primeira vista, por um lado, parece razoável supor que o tratamento jurídico das fake news deverá distinguir as responsabilidades envolvidas na afirmação de fatos e a afirmação de opiniões. A proteção de ideias e opiniões fazem parte do caso central no qual a liberdade de expressão é mais valiosa e merece ser protegida. É por este motivo que mesmo nos EUA, famoso pela forma extrema com que acolhe a liberdade de expressão, se reconhece o dever dos jornalistas de investigar zelosamente uma informação factual antes de divulgá-la. Já a opinião jornalística é mais amplamente protegida. É evidente também que o dever ético do jornalista e do divulgador de notícias não se limita aos seus deveres estritamente jurídicos, aqui discutidos.

Por outro lado, a responsabilização dos criadores de estratégias deliberadas de enganar o público (como a criação de robôs eletrônicos que reproduzem e multiplicam mensagens enganosas) poderão ser controladas, na medida em que forem, de fato, capazes de produzir os resultados deletérios que hoje se lhes atribui (como modificar resultados eleitorais, etc.). A correta avaliação destes impactos, contudo, ainda está a merecer mais detido estudo, para que se evitem os discursos alarmistas e precipitadamente defensores de controles da liberdade de expressão que muitas vezes apenas mal disfarçam a velha intenção de censura e restrição desta importante liberdade. Afinal, os recorrentes alarmes sobre os riscos que a democracia corre ao não censurar as “notícias falsas” são frequentemente casos notórios de fake news.

Cfr. PRADO JR., Bento. Não dizer a verdade equivale a mentir?. Discurso, São Paulo, n. 15, p. 39-48, dec. 1983. ISSN 2318-8863. Disponível em: <http://www.revistas.usp.br/discurso/article/view/37911/40638>. Acesso em: 23 july 2017.

Ronaldo Porto Macedo Junior

Doutor em Direito (1997), mestre em Filosofia (1993), graduado em Direito (1985) e em Ciências Sociais (1987), todos pela Universidade de São Paulo. Atualmente é Procurador de Justiça do Ministério Público do Estado de São Paulo, Professor Titular do Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito da Faculdade de Direito da USP, Professor de Filosofia Política, Ética e Teoria do Direito na DIREITO GV e Professor do LL.M Legal Theory Program na Goethe University em Frankfurt am Main. Foi Visiting Scholar junto à Harvard Law School (1994-1996) e Visiting Researcher na Yale Law School (2002). Fez pós-doutoramento no King’s College of London (2008-2009).