Imagem: TJGO

O dono das páginas de humor “Te sento a vara” foi recentemente condenado ao pagamento de indenização de R$ 100.000,00 (cem mil reais) em virtude da utilização da foto de um idoso em memes. A notícia teve ampla repercussão na imprensa, tendo sido veiculada inclusive no Fantástico da TV Globo. Veja-se ainda, por exemplo: [1], [2] e [3]. A sentença, proferida pela 2ª Vara Cível de Cristalina/GO e ainda sujeita a recurso, entende que é “inquestionável que um idoso prestes a completar 92 anos de idade, nascido nos idos de 1927, no interior de Goiás, sertanejo (folha 15), que guarda consigo tradições e costumes divorciados da desvairada era da internet mal usada, abala-se psicologicamente ao deparar-se com sua imagem veiculada em situações extremamente vexatórias, sem contar que difundida mundo afora”[1].

A situação é muito semelhante ao caso da Irmã Zuleide, já abordado em edição anterior desta coluna. O criador dos memes em questão encontrou em banco de imagens na internet uma foto adequada ao tipo de humor que pretendia fazer. O retrato em preto e branco de um senhor sisudo, com bigodes e olhar denotando reprovação, complementava-se com a proposta da página de “punir”, pelo riso, qualquer traço que se apresentasse como “frescura”, numa visão conservadora de mundo que a foto parece sintetizar.

Ocorre que, tal como no caso da Irmã Zuleide, a foto era de uma pessoa real, que não havia autorizado seu uso para fins humorísticos. Consta que a foto do idoso encontrava-se originalmente em um blog com fotos antigas dos moradores de Campo Alegre de Goiás, onde ele nasceu. A pedido do idoso, sua foto foi removida do portal.

A redação do art. 20 do Código Civil brasileiro é bastante restritiva a respeito do uso da imagem alheia[2]. Foi utilizado como fator de aumento da indenização[3], o fato de (novamente, tal como no caso da Irmã Zuleide) ele estar ganhando dinheiro graças à imagem, não só pela ampla repercussão das páginas no Instagram e no Facebook (que, segundo a sentença, teriam alcançado mais de quatro milhões de pessoas), mas também pela loja online que comercializa produtos como bonés, chapéus, chinelos e camisetas com a logomarca “Sento a vara”.

O fato de a logomarca dos produtos ser apenas uma silhueta com bigode, de o Instagram utilizar hoje uma caricatura, e de a página no Facebook utilizar uma foto paródica (com direito a chapéu, bigode, enquadramento e cor semelhantes à original, mas estrelada por pessoa diversa) provavelmente não salvarão o humorista da condenação, considerando o caráter restritivo da lei brasileira sobre direito de imagem.

Não se trata, aqui, apenas de liberdade de expressão humorística (na medida em que não se discute somente o direito de fazer memes), mas também (e talvez principalmente) da repercussão econômica do uso da imagem alheia. Vale dizer: tem-se a impressão que o valor da indenização só atingiu patamares tão altos porque a imagem alheia foi transformada em produto. Caso isso não tivesse ocorrido no caso concreto, talvez não só a indenização fosse menor, como o próprio direito de criação de memes pudesse ganhar maior fôlego argumentativo.

De um modo geral, os tribunais têm mitigado a necessidade de autorização para uso de imagem apenas em situações específicas (por exemplo, para a ilustração de fatos jornalísticos; quando a obtenção da imagem é feita em local público de acesso irrestrito; no caso de pessoas públicas, entre outros).

O que tanto este caso do “Te sento a vara” como o da Irmã Zuleide parecem indicar é que há consequências jurídicas para o que se faz na internet, por mais que ela ainda seja encarada como um ambiente de liberdade absoluta – em parte porque muitas das irregularidades (ou ilícitos) que se praticam não são descobertas.

Por outro lado, é pertinente questionar se o ordenamento jurídico, do modo como está configurado para a proteção dos direitos de autor e de imagem, não termina por dificultar de modo desproporcional a criação de conteúdo humorístico.

Veja-se, por exemplo, o caso de um blog alemão que teve que pagar 785,40 euros à Getty Images pela utilização da foto de um pinguim em um meme. Ao contrário do caso do “Te sento a vara”, aqui discutido, não se falava em direito de imagem do pinguim, mas sim na utilização não consentida de uma foto de um banco de imagens (protegida por direito autoral) para um meme.

Esse tipo de produção humorística – que, como também abordado em coluna anterior, surge e se espalha do nada – depende usualmente de um componente visual forte. Chegaremos a um momento em que será preciso pagar para ter acesso a um meme, como resultado direto do custo que seu criador teve ao adquirir a imagem que lhe serve de base?

É preciso ponderação para que a proteção à imagem e ao direito de autor não eclipsem de modo irreparável a liberdade de expressão.

No que diz respeito a direitos de autor, como ressaltado em coluna anterior, a regulação aprovada recentemente pela União Europeia foi alvo de diversas críticas, que acabaram levando a um abrandamento de seus termos iniciais para exclusão explícita de alguns tipos de manifestações humorísticas (caricatura, paródia e pastiche) do âmbito de incidência da nova diretiva. Todavia, este ainda é um campo de conflitos e tensões, que devem ser notados no Brasil durante os debates em torno da reforma da Lei de Direitos Autorais (que, aliás, está com consulta pública aberta).

Com relação a direitos de imagem, conquanto pessoas que não são notórias – como o idoso cuja foto foi utilizada pelo “Te sento a vara” – podem esperar um grau de proteção maior (ainda que não absoluto), não parece certo que pessoas públicas, em especial aquelas ocupantes de cargos públicos, se vejam beneficiadas da mesma forma. Pense-se, por exemplo, em toda a produção humorística feita utilizando imagens dos últimos presidentes da República, que não ensejaria (ou ao menos não deveria ensejar) condenação em danos morais como ocorreu com o “Te sento a vara”.

[1] Tribunal de Justiça de Goiás, 2ª Vara Cível e da Fazenda Pública, Autos n. 265417-83.2017.8.09.0036, Juiz de Direito Thiago Inácio de Oliveira, julg. 17/07/2019.

[2] Art. 20. Salvo se autorizadas, ou se necessárias à administração da justiça ou à manutenção da ordem pública, a divulgação de escritos, a transmissão da palavra, ou a publicação, a exposição ou a utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas, a seu requerimento e sem prejuízo da indenização que couber, se lhe atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se se destinarem a fins comerciais.

[3] “Em arremate, eleva o dano moral experimentado, o comércio de produtos como camiseta, chapéu e boné contendo a imagem do idoso, objetos espalhados em todo o país, usados, inclusive, por artistas (folha 119) e jogador de futebol (folha 124)” (Tribunal de Justiça de Goiás, 2ª Vara Cível e da Fazenda Pública, Autos n. 265417-83.2017.8.09.0036, Juiz de Direito Thiago Inácio de Oliveira, julg. 17/07/2019).