Ilustração: Paola Hiroki

Um mundo, uma rede virtual, centenas de regulamentos locais. Esse é um problema com o qual empresas de tecnologia passaram a conviver a partir da edição de leis nacionais voltadas a regular a conduta das pessoas na internet e o modo pelo qual a retirada de informações do ambiente virtual é realizada. Isso porque, ao redor do mundo, diversos são os entendimentos a respeito daquilo que pode e, por outro lado, daquilo que não pode ser difundido na internet. Companhias com atuação global recebem notificações judiciais para remoção de dados dos mais diversos locais do mundo e, para cumpri-las a contento, assim o fazem por intermédio da segmentação geográfica do referido bloqueio.

A conduta em questão, contudo, vem sendo questionada em diversas localidades porque, na visão de algumas pessoas, o Poder Jurisdicional de determinado país não encontraria limitações territoriais nos casos que envolvem a internet. A prevalência, aqui, seria a da ampliação sem fronteiras do direito à dignidade das pessoas afetadas pelas informações difundidas na rede. Dignidade e direitos fundamentais, contudo, não são figuras que conflitam com a ideia de aderência ao território, característica básica da jurisdição. Isso porque, justamente por não ter conhecimento daquilo que é lícito e daquilo que é ilícito em determinada localidade, o Judiciário de determinada nação não pode afetar o acesso à informação de pessoas localizadas em outros países. É isso o que a presente opinião busca demonstrar.

Em primeiro lugar, é importante que se chame a atenção para a existência de um considerável número de decisões judiciais que impõem a remoção de informações da internet no Brasil. Por mais que, teoricamente, a censura seja proibida pelo contido no art. 5º, IX, da Constituição Federal de 1988, ela é ordinariamente praticada mediante a utilização, pelo Judiciário, de nomes mais brandos, como “indisponibilização”, “remoção”, “bloqueio” ou “exclusão de conteúdo” da internet. É absolutamente usual que empresas com atuação na rede virtual recebam, semanalmente, dezenas (para não dizer centenas) de ordens judiciais que contêm comandos de exclusão de informações (vídeos, fotos, textos etc.) da internet.

A partir desse contexto, torna-se importante definir a importância da segmentação geográfica do bloqueio de informações: (i) não fosse assim, por força da intolerância religiosa, diversas manifestações seriam simplesmente extirpadas do mundo virtual – basta citar o exemplo do filme Êxodo, de 2014, cuja exibição é proibida no Egito[1]; (ii) não fosse assim, por força da censura política, protestos ao redor do mundo não poderiam ser divulgados – basta citar o exemplo dos protestos na Praça da Paz Celestial, ocorridos e brutalmente censurados pelo governo chinês. No Brasil, como visto inicialmente no parágrafo anterior, a censura é um tema absolutamente sensível porque, por décadas, a população ficou sujeita à proibição (inclusive prévia) de manifestação a respeito de determinados assuntos. É por tal razão que a Constituição Federal de 1988 prescreve ser “livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença” (art. 5°, IX), e mais, que “nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística”, sendo, ainda, “vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística” (art. 220, §§ 1º e 2º).

Os órgãos brasileiros – inclusive o Judiciário -, portanto, muito provavelmente (para não dizer em toda e qualquer hipótese) não admitiriam interferência estrangeira em relação às informações que podem ser encontradas por pessoas que acessam a internet a partir do Brasil. É preciso, então, pensar em termos de reciprocidade com base naquilo previsto pelo ordenamento jurídico pátrio.

Especificamente a esse respeito, a Constituição Federal de 1988 descreve, em seu art. 4°, que as relações entre o Estado brasileiro e outros países soberanos será regida por uma série de princípios, valendo o destaque, nesta oportunidade, para os seguintes: autodeterminação dos povos (III), não-intervenção (IV) e igualdade entre os Estados (V). Em atenção aos critérios de territorialidade e à reciprocidade acima elencados e, embora não tratando especificamente de situação ocorrida na internet, o STJ já teve a oportunidade de se manifestar no sentido de que “a autoridade dos juízes (e, portanto, das suas decisões) não pode extrapolar os limites territoriais do seu próprio País[2].

É, aliás, justamente com base na ideia de não-intervenção que a Constituição prevê a existência de um procedimento específico para outorga de eficácia a decisões estrangeiras no Brasil (art. 105, I, i): é de suma importância, como se percebe, que decisões proferidas em outros países passem por um processo de homologação antes de produção de efeitos no Brasil. Do mesmo modo, é de se imaginar que decisões brasileiras – pautadas, como é evidente, pelo respeito Constituição Federal -, não intervenham na vida de pessoas sem nenhuma vinculação com o Brasil.

Em termos de direito processual, a doutrina já teve a oportunidade de afirmar, por exemplo, que aderência ao território, característica basilar da jurisdição, está conectada ao tema da competência internacional[3]. No CPC/2015, o princípio em questão encontra regulamentação pelo disposto no art. 16 da lei processual: “Art. 16.  A jurisdição civil é exercida pelos juízes e pelos tribunais em todo o território nacional, conforme as disposições deste Código”. Mostra-se pertinente destacar, ainda, que o art. 26, § 3º, do CPC/2015, prescreve que “na cooperação jurídica internacional não será admitida a prática de atos que contrariem ou produzam resultados incompatíveis com as normas fundamentais que regem o Estado brasileiro”.

Ou seja, o Poder Judiciário brasileiro pode, evidentemente, negar eficácia a atos que contrariem ou produzam resultados incompatíveis com as normas fundamentais do Estado brasileiro. Do mesmo modo, por respeito ao princípio constitucional da não-intervenção, a jurisdição brasileira não pode ser exercida fora do território nacional, porque o Judiciário brasileiro regula relações jurídicas instituídas no Brasil. Daí porque (i) acessos ocorridos por intermédio de terminais (computadores, tablets, smartphones) localizados no Brasil são regidos pela legislação brasileira, mas (ii) acessos ocorridos fora do território nacional são regidos, como é de se esperar, pela legislação existente naquele país, e não pelo ordenamento jurídico brasileiro. Não por outra razão, o art. 2°, I, da Lei 12.965/2014 (Marco Civil da Internet), prevê que a disciplina do uso da internet no Brasil deve atentar-se para “o reconhecimento da escala mundial da rede” e, por consequência, das implicações jurídicas daí advindas.

Cumpre destacar, aliás, que o entendimento ora defendido já encontra ecos na jurisprudência nacional, principalmente no âmbito do Tribunal de Justiça de São Paulo. Em tais casos, a Corte paulista teve a oportunidade de consignar que “à evidência, o comando judicial limita-se ao território nacional, à luz do disposto no art. 16 do Novo CPC […] de sorte que não se pode compelir o apelante, Google Brasil, a promover a retirada desse mesmo vídeo em outros países[4]; e mais: “A regra é que a remoção de conteúdo deve ser local, não global. Limite territorial dos comandos judiciais que se aplica, também, em casos envolvendo a internet[5].

Os tribunais de outros países também vêm se deparando com a necessidade de análise de situações semelhantes. Deve-se destacar, por exemplo, que uma ordem judicial com efeitos globais já foi considerada juridicamente inexequível e contrária à legislação dos Estados Unidos da América. Isso ocorreu no caso Google Inc. x Equustek Solutions Inc[6]. Na situação ora sob comento, a Suprema Corte do Canadá decidiu, em julgamento não unânime (7×2), que a remoção de determinado material da internet deveria ocorrer de modo global. Com base no referido contexto, a Google buscou, junto ao Judiciário norte-americano, declaração no sentido de afastar a eficácia “mundial” de determinação “local” de remoção de informações de sua ferramenta de buscas. O pedido liminar da Google foi deferido com fundamento no destacado pelo § 230 do Communications Decency Act (CDA), expedido pelo Congresso americano no ano de 1996. No referido parágrafo, há declaração expressa no sentido de que representa questão de “política pública dos Estados Unidos” a “promoção do desenvolvimento contínuo da internet e de outros serviços eletrônicos de natureza interativa”, bem como a “preservação de um mercado livre, vibrante e competitivo na internet e em outros serviços eletrônicos de natureza interativa, sem regulamentação Federal ou Estadual”:

Já no caso Yahoo Inc. v La Ligue Contre le Recisme et L’Antisemitisme[7], um Tribunal Distrital analisou as implicações de uma ordem francesa, limitada à França, que determinava a remoção de certos resultados do provedor de buscas Yahoo. Naquela oportunidade, consignou-se que “O mundo moderno é palco de culturas altamente diversas, com sistemas de valores também altamente diferentes. Não há dúvida que usuários da internet nos Estados Unidos rotineiramente se engajam em discursos que violam, por exemplo, leis chinesas contrárias à liberdade religiosa, leis de diversos países contra a igualdade de gêneros e a homossexualidade, ou até mesmo leis inglesas contra a liberdade de expressão”. A Corte, na sequência, destacou que a ordem judicial era limitada à França, e que, caso a questão fosse relacionada à sua aplicabilidade pela Yahoo em relação aos usuários americanos, o debate seria muito mais simples: “Se fosse verdade que ordens judiciais francesas, por seus próprios termos, requisitassem ao Yahoo o bloqueio de acesso à informação a usuários dos Estados Unidos, este seria um caso muito diferente e simples”. Seria simples porque uma ordem como esta seria rejeitada imediatamente.

Há, ainda, locais em que a limitação territorial de comandos judiciais relacionados à internet é objeto de intensos debates. A União Europeia, por exemplo, ainda discute em sua mais alta Corte de Justiça se o direito ao esquecimento – “direito material” cuja aplicação no Brasil é objeto de controvérsia – por ela reconhecido no ano de 2014 pode e deve estender-se além das fronteiras do continente. A decisão a ser expedida pelo Tribunal europeu será (possivelmente) a última de uma disputa que envolve a Google e a França há mais de quatro anos.

De todo modo, é possível verificar que a tendência dos julgamentos – seja no Brasil, seja em outros países – é a de que os comandos judiciais de retirada de informações da internet encontrem como limite as fronteiras do Estado emissor. Nada mais adequado, aliás, porque, como visto anteriormente, não há como o Judiciário de determinado país dizer o que pode e o que não pode ser acessado por pessoas residentes em outras localidades. É o direito dessas pessoas – que não têm, evidentemente, qualquer vinculação com o país emissor da ordem de censura – que deve prevalecer.

[1] No Egito, a exibição do filme “Êxodo, Deuses e Reis” foi proibida sob o argumento de que a produção contava uma história “distorcida”. A informação foi disponibilizada no Brasil pelo portal G1: http://g1.globo.com/pop-arte/cinema/noticia/2014/12/egito-proibe-filme-exodo-deuses-e-reis-porcontar-historia-distorcida.html

[2] Rcl 2.645/SP, Rel. Min. Teori Zavascki. DJe 16/12/2009

[3] YARSHELL, Flávio Luiz. Curso de Direito Processual Civil. São Paulo: Marcial Pons, 2014. p. 165.

[4] TJSP. AC 1054138-03.2014.8.26.0100. Rel. Des. Salles Rossi. J. 05.04.2017.

[5] TJSP. AI 2059415-21.2016.8.26.0000. Rel. Des. Natan Zelinschi de Arruda. J. 11.08.2016.

[6] Case 5:17-cv-04207, Google Inc. vs Equustek Solutions Inc., Clarma Enterprises Inc. and Robert Angus. O caso tramita no Distrito Norte da Califórnia, da Divisão de San Jose.

[7] Yahoo Inc. v La Ligue Contre le Recisme et L’Antisemitisme (2001), 169 F Supp 2d 1181 [“Yahoo Inc.”] at 1186-1187 (rev’d on other grounds (2006) 145 F Supp 2d 1168).