Ilustração: Bia Leme

Em julho deste ano, no principal evento da publicidade, o Cannes Lions, os jurados receberam a orientação formal de se atentarem à responsabilidade social, especialmente no que se refere à objetificação de gênero. Ainda em julho, a Advertising Standards Authority (ASA), agencia reguladora da Inglaterra, adotou novos e mais rígidos padrões na análise de materiais publicitários que reforcem preconceitos. No mesmo mês, no Brasil, o grande Washington Olivetto, ícone da publicidade, deu uma declaração no mínimo infeliz sobre a questão de gênero, ao afirmar que a expressão “empoderamento feminino” era um clichê de mau gosto. Tão coincidentes no tempo e tão diversos no conteúdo, esses fatos dão azo a uma reflexão sobre Publicidade e Gênero, Raça e grupos LGBTQ.

Já não se discute mais o fato de que a publicidade está compreendida na garantia constitucional de liberdade de expressão. Esse debate tomou espaço durante anos: em razão do caráter essencialmente comercial, a publicidade muitas vezes foi considerada como uma comunicação que não seria alcançada pelo comando constitucional. Essa discussão até que está bem encaminhada, mas outra surge com um poder de controvérsia maior ainda: o quanto a publicidade reforça estereótipos no que se refere a gênero, raça, ou ao grupo LGBTQ, ou o quanto impõe padrões inalcançáveis a um ou a outro desses grupos.

Não é muito difícil para qualquer um perceber que as mulheres são hipersexualizadas em publicidade de cerveja; que os protagonistas de publicidade de produtos para bebês são mulheres, e que muitas empregadas domésticas, quando retratadas em publicidade, são negras.

A questão não é simples e traz uma consideração que escapa à questão de gênero, que é saber até que ponto o discurso em geral, e o discurso da publicidade especificamente considerado, contribui para os processos de manutenção do status quo ou para a transformação da sociedade. Ou ainda, o quanto que o discurso da publicidade é reflexo (“mirror“) da sociedade, e o quanto serve para formá-la, ou moldá-la (“mould“).

Uma pesquisa denominada TODXS, realizada pela agência Heads, em parceria com o Instituto Patrícia Galvão, analisou como gênero e raça são caracterizados na publicidade brasileira. Como resultado, foi divulgado que 65% das mulheres não se sentem representadas pela publicidade. Essa mesma pesquisa ainda revelou que, das 3.038 inserções de anúncios de 30′ na TV, somente 5,13% delas empoderam as mulheres.

Uma outra pesquisa, denominada A Mulher e a Mídia, realizada com mais de mil mulheres pelo Think Eva, núcleo de inteligência do feminino, também merece atenção. Com o objetivo de analisar a relação da mulher com a publicidade, essa pesquisa detectou que 62,4% das mulheres entrevistadas dizem que a publicidade desperta nelas o sentimento de mesmice, e que, embora 73,2% delas tenham interesse em comunicação de tecnologia, percebem que a maior parte dessas empresas se dirige unicamente ao público masculino em suas mídias.

A própria entidade inglesa mencionada acima, a ASA, divulgou um relatório sobre as reações do público britânico frente aos anúncios publicitários, concluindo que é necessária maior vigilância e regulação no que se refere ao uso de estereótipos de gênero em anúncios. Com base nesse relatório, a entidade decidiu que, a partir de 2018, implementará regras mais severas na análise de anúncios publicitários.

Não se trata de limitar a livre iniciativa, ou de cercear a liberdade de as empresas anunciarem, mas de impedir que anúncios racistas, discriminatórios ou homofóbicos, que ofendam ou causem prejuízo a grupos de pessoas, sejam veiculados sem qualquer reserva. Há muitos trabalhos publicados sobre o assunto, mas a conclusão é sempre a mesma: de que os anúncios, sejam de TV, Internet ou revistas, de modo geral contribuem para reafirmar estereótipos e muitas vezem implicam em discriminação.

No festival internacional de Publicidade de Cannes do ano passado, conforme amplamente noticiado, a campanha da Aspirina, da Bayer, foi acusada de ser machista. O anúncio mostrava um diálogo entre uma aspirina normal e uma super forte, com uma referência a um ato sexual filmado por uma das partes sem a anuência da outra. A agência, que antes de uma reclamação geral havia ganhado troféus pela publicidade, precisou devolvê-los.

Não deve demorar muito para que aqui no Brasil, o CONAR anote mais um Anexo ao seu Código de Autorregulamentação com regras mais específicas e diretas no que se refere às questões envolvendo gênero, raça e LGTBQ – para além das mais genéricas já presentes no Código, que condenam preconceito e discriminação de qualquer espécie.

Evidente que o assunto é complexo. Durante a Parada Gay deste ano em São Paulo, alguns anunciantes divulgaram material específico para o público, e foram ao mesmo tempo elogiados e criticados pela iniciativa, num debate que se travou sobre o oportunismo da ação.  Há também aqueles anunciantes que tomam o lugar de fala de mulheres ou de grupos LGBTQ em publicidades e, pior ainda: que internamente, nas suas estruturas de negócios, não aplicam os mesmos valores transmitidos nessas peças publicitárias.

Os desafios são imensos, mas uma coisa é certa: não há mais lugar para publicidade que continue a difundir ou reafirmar preconceitos, por mais sutis que possam ser. Como muitas plataformas favorecem o diálogo com as marcas, cedo ou tarde a comunicação será alterada. Para o bem da liberdade de expressão.

Taís Gasparian

Sócia do escritório Rodrigues Barbosa, Mac Dowell de Figueiredo, Gasparian Advogados em São Paulo. Graduada em Direito e Mestre em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela Universidade de São Paulo. Possui grande experiência em assuntos relativos à Liberdade de Expressão, com foco no contencioso cível, da Internet e no mercado publicitário. Leciona Direito Digital para Jornalistas e Direito na Publicidade na Universidade ESPM em São Paulo. Colaboradora da Universidade de Columbia/NY no Global Freedom of Expression Website. Em 2002, foi Chefe de Gabinete do Ministério da Justiça.