Pegadinhas são discurso humorístico protegido?
Conhecido como ReSet, Kanghua Ren – nascido na China e radicado em Barcelona – era um dos maiores youtubers em atividade na Espanha, com cerca de 1,2 milhão de seguidores. Na semana passada, ele foi condenado a 15 meses de prisão e ao pagamento de indenização por danos morais no valor de 20 mil euros. Ele também foi banido do YouTube por cinco anos. Durante esse período seu canal será apagado e ele não poderá criar outro no lugar[1].
Essas sanções são represália a um vídeo publicado em 2017 que retrata uma “pegadinha” aplicada pelo youtuber, que consistia em substituir o recheio de bolachas por pasta de dente e presentear o pacote a um morador de rua. Segundo noticiado pelo jornal El País, após a postagem do vídeo ele teria dito: “Talvez eu tenha ido um pouco longe, mas veja pelo lado positivo: isso vai ajudá-lo a limpar os dentes. Acho que ele não os limpou desde que ficou pobre”[2].
Esta não é a única polêmica na qual ReSet já se envolveu. Conforme ressaltado pela juíza que o sentenciou, ele já ofereceu “sanduíches com excrementos de gato a idosos e crianças em um parque”, e sempre prefere “vítimas fáceis ou vulneráveis”. Neste último caso, aliás, ainda segundo a sentença, o morador de rua, de 52 anos, é alcoólatra e não fala espanhol[3].
O vídeo de ReSet se insere num contexto mais amplo, no qual youtubers competem ferozmente por atenção, colocando eles próprios e/ou terceiros em situações inusitadas, em busca do maior número de visualizações, curtidas e comentários.
Quando esses desafios – para chamá-los de alguma maneira – são protagonizados pelos próprios youtubers, discute-se o estímulo que essas atitudes têm sobre o público que os acompanha, especialmente o infantil. Mas e quando, como no caso de ReSet, há impacto sobre terceiros?
Abstraindo dos aspectos criminais da questão – até mesmo porque ReSet não chegará a cumprir a pena de prisão na Espanha, por não ter antecedentes – parece certo que no Brasil a condenação ao pagamento de indenização por danos morais também seria certa.
Os tribunais brasileiros parecem ter consolidado posição amplamente contrária a pegadinhas especialmente quando: (a) há alguma repercussão na integridade física da vítima; (b) a vítima é uma pessoa comum, que não consentiu previamente com a participação no quadro.
Essa moldura foi aplicada tanto a casos mais simples, como a pegadinha do Programa Silvio Santos na qual pessoas eram incomodadas por um aspirador de pó enquanto aguardavam na fila da lotérica[4], até situações mais graves, como quando o extinto Pânico na TV! atirou terra no rosto de um engraxate[5], despejou baratas vivas sobre uma mulher que passava na rua[6] ou arrancou as roupas de um sujeito que trabalhava como Papai Noel[7].
Porém, mesmo quando não há essa repercussão, por assim dizer, corpórea, a agressão puramente moral também pode dar azo à condenação, como no caso de uma mulher que estava tomando sol numa praia do Rio de Janeiro, ocasião em que foi rotulada como pouco atraente pelos apresentadores do Pânico na TV! no quadro Vô/Num Vô[8].
Isso quer dizer então que pegadinhas e similares não são formas de expressão humorística protegidas? Não necessariamente.
Em primeiro lugar, há que se destacar o entendimento dos tribunais de que, se alguém que é abordado pela equipe de programa de TV humorístico consente em ser entrevistado ou participar de alguma brincadeira, deveria estar ciente da possibilidade de abordagem jocosa do material gravado ou da iminência de piadas de duplo sentido, por exemplo[9].
Em segundo lugar, a tomada de precauções como a preservação da imagem das vítimas das pegadinhas (com borras sobre o rosto, por exemplo) pode ajudar a mitigar os danos.
Em terceiro lugar, há exemplos de pegadinhas que, à sua maneira, contribuem ao debate público. Foi o caso, por exemplo, do grupo Les Justiciers Masqués (Os Justiceiros Mascarados), que em 2008 passou um trote na ex-governadora do Alasca e então candidata à vice-presidência dos Estados Unidos Sarah Palin. Durante os quase seis minutos da ligação, transmitida ao vivo por uma rádio canadense, o apresentador Marc-Antoine Audette finge ser Nicolas Sarkozy, à época presidente da França, e fala sobre caça, política internacional e família[10]. As platitudes ditas por Palin (bem como a facilidade com que ela foi enganada pelo humorista) trazem um comentário político implícito – seu aparente despreparo para o cargo[11].
Como quase tudo no direito, portanto, as pegadinhas estão inseridas numa zona cinzenta em termos de apreciação judicial, sujeita à avaliação casuística, ainda que haja algumas diretrizes razoavelmente claras no que é considerado abusivo. De todo modo, o caso de ReSet e os desafios cada vez mais absurdos a que se propõem youtubers também no Brasil evidenciam que aparentemente ainda há demanda por esse tipo de entretenimento, a despeito de suas potenciais implicações éticas e jurídicas. O diagnóstico que o próprio ReSet fez durante seu julgamento é eloquente: “Faço as coisas para dar espetáculo, as pessoas gostam de coisas mórbidas”[12].
[1] Disponível em: https://g1.globo.com/pop-arte/noticia/2019/05/31/youtuber-e-condenado-a-15-meses-de-prisao-apos-dar-biscoito-recheado-com-pasta-de-dente-para-morador-de-rua.ghtml. Acesso em 31/05/2019.
[2] Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2019/05/31/internacional/1559298970_871759.html. Acesso em 03/06/2019.
[3] Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2019/05/31/internacional/1559298970_871759.html. Acesso em 03/06/2019.
[4] TJSE. 2ª Câmara Cível. Apelação Cível 2855/2011. Rel. Des. Marilza Maynard Salgado de Carvalho, julg. 07/06/2011.
[5] TJSP. 5ª Câmara de Direito Privado. Apelação Cível 9168162-58.2007.8.26.0000. Rel. Des. Dimas Carneiro, julg. 29/04/2009.
[6] TJSP. 3ª Câmara de Direito Privado. Apelação Cível n. 9057276-26.2006.8.26.0000. Rel. Des. Caetano Lagrasta, julg. 22/08/2006.
[7] TJSP. 8ª Câmara de Direito Privado. Apelação Cível 0118259-47.2006.8.26.0000. Rel. Des. Ribeiro da Silva, julg. 02/02/2011.
[8] TJRJ. 13ª Câmara Cível. Apelação Cível 2009.001.32419. Rel. Des. Ademir Paulo Pimentel, julg. 30/09/2009.
[9] “Nessa esteira, verifica-se que a imagem do apelado não fora gravada de forma clandestina, mas, ao revés, livremente respondera ao questionamento do entrevistador, tanto que manifestara interesse em saber qual o dia de sua aparição, não se havendo falar, pois, em uso indevido da imagem. O que lhe causara indignação, resta claro, fora a repercussão negativa do resultado da edição de sua imagem, que por segundos lhe desatacara os mamilos, lhe expondo, segundo afirma, a constrangimentos perante todos os seus colegas de trabalho. Ocorre, contudo, ser patente o cunho humorístico da divulgação da imagem do apelado, inerente, pois, à natureza jocosa das entrevistas veiculadas pelo CQC, como de todos conhecido, inclusive, do próprio autor que, repita-se, estava ciente de sua participação em entretenimento de humor, sendo previsível que sua aparição na TV se desse de forma caricata, tal como acontece com a quase totalidade de seus entrevistados, famosos ou não, sem que se possa imprimir o caráter desabonador imputado pelo apelado” (TJRJ. Apelação Cível 0341400-64.2010.8.19.0001. Rel. Des. Mauricio Caldas Lopes, julg. 18/11/2013).
[10] DAVIS, Jessica Milner. Humour in pranks and hoaxes: the failed (?) Australian radio prank and other cases. 14th International Summer School on Humour and Laughter: theory, research and applications. Sheffield, 2014.
[11] O áudio da ligação pode ser ouvido em: https://www.youtube.com/watch?v=SBjM4x_bZ5o. Acesso em 03/06/2019. Uma das pistas de que o autor da ligação não é Sarkozy é que Audette cita que seu assessor especial para assuntos americanos é Johnny Hallyday, que é na verdade um conhecido cantor francês (https://pt.wikipedia.org/wiki/Johnny_Hallyday).
[12] Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2019/05/31/internacional/1559298970_871759.html. Acesso em 03/06/2019.