Leonardo não trabalhou nos dias em que os caminhoneiros paralisaram. O motorista de Uber teve que arcar com o prejuízo dos dias parados, mas ponderou que as perdas não foram maiores do que nos dias em que o carro precisa de um concerto ou quando ele pega uma gripe um pouco mais forte. Ele pensa que todos deveriam ter aderido de alguma forma ao movimento, mas não apenas contra o aumento do combustível: “Era preciso parar até que fizessem todas as reformas: política, agrária…”. Como Leonardo, a grande maioria dos brasileiros apoiou as paralisações. Mais controverso é avaliar sua impressão sobre a falta de engajamento da população naqueles dias.

A greve dos caminhoneiros “bugou” as disputas nas redes sociais. De um lado o formato e o fato de ser contra medidas impopulares do governo Temer os aproximaram de um dos polos do debate político, do outro, a retórica antipetista, em alguns pontos liberal, e o apoio patronal os aproximaram do outro polo. Num primeiro momento a esquerda aproveitou o ensejo para criticar o governo Temer, mas com muita cautela para não declarar apoio ao movimento, que foi saudado pela direita. As ambiguidades, porém, impediram que qualquer um dos lados abraçasse o movimento sem ressalvas. Os blogs de esquerda taxaram o evento de locaute e nos grupos de WhatsApp da direita os mais militantes rapidamente começaram a desconfiar que as correntes que viralizavam eram produzidas por petistas. Já a grande imprensa, com seu cacoete paternalista, fez uma cobertura particularmente ruim. De todos os lados a esfera pública estava com medo dos efeitos que a paralisação poderia causar. Talvez por isso a percepção do Leonardo sobre a baixa adesão da população.

De onde acompanhei vi outra coisa. Ocupações de escolas em Francisco Beltrão (PR), atos e bloqueios espontâneos de motoboys, vigilantes, motoristas de van escolar e de Uber em São Paulo que coincidiu com mobilização de professores da rede particular, uma foto de uma colega que sem querer registrou um travamento na rodovia Raposo Tavares e uma série de eventos no meu feed de notícias davam pistas do descompasso entre o grau de mobilização da população e o que circulava nos meios de comunicação. Nenhum desses indícios, porém, foi mais convincente do que o que presenciei lá mesmo em Taboão da Serra alguns dias antes de conhecer Leonardo.

Movido pelo desejo de entender melhor esse momento histórico, combinei com um grupo de amigas de ir visitar um dos pontos de bloqueio e com sorte conversar com os motoristas. Nosso ímpeto, porém, foi tardio. Quando chegamos em Taboão da Serra em direção à Embu das Artes, fomos informados de que o exército já havia liberado a pista. Sabíamos, porém, que um pequeno grupo de estudantes secundaristas havia marcado um ato em apoio aos caminhoneiros ali na praça central. Decidimos ficar para conferir. Como chegamos cedo, começamos a preparar alguns cartazes. Conforme as pessoas chegassem poderíamos incluí-las na atividade e assim entenderíamos um pouco melhor pelo que se manifestavam. A primeira a chegar foi umas das organizadoras. Ela argumentava que era preciso lutar “por nossos direitos” independente de ideologia política, em particular, não deveria fazer diferença o fato de ela e sua amiga serem a favor de uma intervenção militar. Tentando entender isso melhor, até porque formalmente uma Garantia de Lei e Ordem já estava em vigor em todo o país, uma amiga insistiu no tema e ouviu que o que elas queriam era que os militares tirassem Temer e todos os corruptos de lá para que chamassem eleições diretas e o povo pudesse votar no Lula. Para quem acompanha cotidianamente o debate público essa sentença é difícil de digerir. Compreendi como um esforço comovente de quem, usando o vocabulário limitadíssimo que a esfera pública polarizada oferece, tenta formular algo que seja transformador e ao mesmo tempo abarque os discursos ideologicamente concorrentes. Assim o papel dos militares seria algo como o de “zerar” o jogo político para um futuro mais próspero, mais próximo de um passado melhor. Arrisco que esse desejo difuso de mudanças profundas e essa mesma dificuldade em formulá-lo tenham sido compartilhados por grande parte daqueles que apoiaram a paralisação.

Estávamos em cerca de 20 pessoas com perfis bem distintos — a organizadora que já mencionei; sua amiga, uma secundarista que defendia a intervenção, mas odiava o Bolsonaro porque ela era “pansexual” e ele homofóbico; um secundarista que já fora Bolsonarista e contra a ocupação da escola Fernão Dias Paes, mas que hoje é de esquerda e tem ido aos atos contra os aumentos das passagens; uma universitária que já foi do PSTU, mas que largou essa militância por falta de tempo agora que trabalha e estuda; uma professora que já se candidatou a vereadora pelo PSOL; um secundarista de esquerda que foi este ano na Marcha da Maconha; um secundarista que quer ser delegado de polícia e alguns outros com quem não tive tempo de papear — conversando e fazendo cartazes, quando fomos surpreendidos por uma movimentação atípica de motos. Algumas dezenas de motoboys, que não tinham qualquer ligação conosco ou com os secundaristas que organizaram o ato, fecharam a Regis Bittencourt no sentido bairro bem na frente da praça em que estávamos. Corremos para lá. Certamente sozinhos não teríamos força para tomar a avenida e arrisco que os motoqueiros a teriam fechado por poucos minutos apenas, mas a catarse do encontro gerou algo novo. Somamos com cartazes e uma grande faixa que ainda estava em branco(!!!). Acordamos no calor do momento em escrever “Paz, Justiça e Combustível. Quebrada em luta. Por um país mais justo. #foratemer” (uma curiosa adaptação não intencional do slogan do PCC, “Paz, Justiça e Liberdade”, combinada com palavras de ordem da esquerda e de direita e uma hashtag de oposição ao governo: tudo junto). Os gritos de guerra improvisados variaram entre “trabalhador vamos lutar, essa crise você não tem que pagar”, “abaixa o preço”, “eu sou brasileiro com muito orgulho, com muito amor”, “não acabou, tem que acabar, eu quero o fim da polícia militar” e “fora Temer”, o último inclusive entoado pelos motoristas dos carros. Em alguns minutos a polícia chegou e negociou a liberação de uma das pistas, mas mesmo atendendo a reivindicação dos militares fomos expulsos pela tropa de choque e suas bombas de estilhaço.

Voltamos para a praça e ainda cheios de adrenalina organizamos uma roda de debate para tentar assimilar o evento surreal que acabávamos de presenciar. Se esse encontro inusitado e corajoso entre ativistas, estudantes secundaristas e motoboys tivesse durado mais tempo, se pudéssemos nos ouvir mais, quem sabe não poderíamos ter formulado juntos algo melhor do que essas combinações estranhas de palavras-chaves do vocabulário polarizado ou a mesma ladainha que acompanhamos todos os dias nas redes sociais? Desta vez, porém, a violência da polícia e o inusitado consenso da esfera pública polarizada com seu medo frente ao imprevisível que vem de baixo serviram para apagar essas histórias.