Ilustração: Paola Hiroki

No início da década de 1990, o Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC) da Fundação Getúlio Vargas realizou um projeto de história oral que entrevistou inúmeros militares, das mais diversas patentes, que estiveram envolvidos em episódios do golpe de 1964, da repressão da ditadura civil-militar, e do processo de transição política. Em uma dessas entrevistas, o general Leônidas Pires Gonçalves, que frequentou os mais altos escalões da hierarquia militar e de órgãos repressivos, afirmou: “O poder é uma ambrosia. Quem experimenta fica realmente encantado com ele.”

Ainda que se possa fazer objeções à qualidade da análise da participação direta dos militares na política brasileira, lembrei imediatamente da frase ao ler as notícias sobre a decretação da intervenção do governo federal na segurança pública do Rio de Janeiro.

Para além dos debates que a ação poderia suscitar em relação à forma que majoritariamente se escolhe para o combate à violência, gostaria de chamar a atenção para um movimento que tem crescido na estrutura administrativa federal, e que começa a ser explicitado a partir dessas políticas de intervenção: a crescente nomeação de militares para cargos-chave na administração pública, o que, em outras palavras, poderia nos indicar um crescente militarismo do Estado brasileiro. Corroborando o processo, o interventor no Rio de Janeiro será um general do Exército.

O paulatino esvaziamento de competências do Ministério da Justiça, principalmente com a divulgação da criação de um novo ministério, o da Segurança Pública, que será responsável pela Polícia Federal (função anteriormente desempenhada pela pasta da Justiça), a progressiva nomeação de militares na Casa Civil, dão o tom dessa ocupação no Estado de Exceção em que vivemos.

Penso, com muita preocupação, como ocorrerá, no futuro – e se ocorrerá – a transferência dessas competências, novamente, para civis, e por isso a análise de Leônidas Pires Gonçalves serve como um aviso, e remete à conjuntura de transição da ditadura para a democracia e as resistências de inúmeros setores militares à subordinação frente ao poder civil, considerado por muitos como ineficaz, em inúmeros aspectos.

Essa apreensão é reforçada por que a divulgação da intervenção militar no Rio de Janeiro se dá no dia em que o Ministério dos Direitos Humanos do Brasil divulga a sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos, que condenou o Brasil a reabrir as investigações sobre duas chacinas ocorridas em 1994 e 1995 na comunidade Nova Brasília, no Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro. A sentença sobre a violência policial foi divulgada no dia 11 de fevereiro, e uma das obrigações do Estado brasileiro era publicar, de forma ampla, o seu conteúdo. Ainda que tenhamos acesso completo ao texto, garantindo o direito à informação como um direito humano, ainda há um longo caminho a ser trilhado entre a comunicação e o conhecimento, para que as duas divulgações não estabeleçam uma relação de causa e consequência, mas sim sejam uma triste coincidência.

Caroline Silveira Bauer

Professora do curso de História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, onde atua na graduação e na pós-graduação. Entre 2011 e 2013, trabalhou como consultora da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República. É autora de diversas obras sobre a temática da ditadura civil-militar brasileira, integrando grupos de pesquisa e investigação nacionais e internacionais.