O canal no YouTube do grupo de humor carioca “Porta dos Fundos”, um dos maiores do país com mais de 16 milhões de inscritos, publica cerca de três vídeos curtos por semana. Praticamente todos superam as 100 mil visualizações, havendo sucessos como “Sobre a mesa”, de 2012, já assistido 26 milhões de vezes. O canal nunca deixou de se envolver em polêmicas, seja por piadas com temática religiosa (como no especial de Natal do ano passado, que chegou a ser censurado pelo Judiciário, algo descrito em coluna anterior deste espaço), seja por mexer em vespeiros políticos e culturais (o próprio “Sobre a mesa” é um exemplo eloquente dessa afirmação, por tratar de sexualidade sem pudores).

Porém, se havia alguma polarização em torno da licitude ou não do especial de Natal – isto é, se ele seria ofensivo ao cristianismo a ponto de dever ser removido, com o julgamento definitivo, pelo Supremo Tribunal Federal, no último dia 3 de novembro de 2020, concluindo que o vídeo deve continuar disponível –  o Porta dos Fundos sofreu o que pode ser considerado seu maior revés com a opinião pública.

O motor dessa crise foi um vídeo em que uma personagem, apresentada como Yollanda Ramos, do Partido Novo, recebe a notícia de que teria sido a vereadora mais votada de Curitiba e conta como teria obtido o resultado graças, entre outros expedientes, ao vazamento intencional de imagens íntimas. Ocorre que, na capital do Paraná, a vereadora mais votada era do partido, evidentemente não fictício, da personagem e se chama Indiara Barbosa. Conforme noticiado posteriormente pela imprensa, a vereadora eleita afirmou em suas redes sociais que o vídeo não a representava, e que “É uma pena que o @portadosfundos associe o sucesso de uma mulher a alguma conotação sexual. Temos muito trabalho para mudar essa cultura retrógrada”. O canal respondeu à publicação: “Essa personagem de fato não é você. Yollanda é uma criação de ficção e humor que existe há 9 anos e, dentro do seu universo, explora sua sexualidade livremente. O Porta acredita que o Brasil precisa de mais mulheres em cargos públicos. Parabéns pela vitória!”.

Apesar de a personagem existir de fato há algum tempo, tendo inclusive protagonizado vídeos anteriores da produtora, como “Roi, Yollanda?”, fato é que jamais havia obtido tamanho destaque. A “explicação” não foi suficiente para evitar a repercussão negativa, a ponto de o vídeo ter sido apagado do canal (embora seja possível encontrá-lo, ainda, no YouTube, fora do Porta dos Fundos). Entrevistada, a vereadora eleita disse ainda não saber que medidas tomar, mas que esperaria uma retratação da produtora.

Tecnicamente, embora nada impeça os humoristas de a fazerem espontaneamente, a retratação não é prevista na Constituição Federal como um dos remédios possíveis contra abusos na liberdade de expressão: os arts. 5º, V e X listam apenas o direito de resposta e a indenização por danos materiais ou morais. O que poderia ser argumentado em eventual ação indenizatória é que o Porta dos Fundos, ao utilizar elementos da realidade (um partido e uma cidade efetivamente existentes), correu o risco de produzir, em seu roteiro ficcional, associações incômodas com pessoas realmente existentes, algo potencializado pelos nomes da personagem e da vereadora serem parecidos (iniciados com o fonema “i”). Poderia se argumentar, em tese, por uma falta de dever de cuidado (isto é, culpa, em sentido amplo) dos roteiristas em não checar fatos que pudessem causar tamanho ruído.

Porém, a semelhança ou dessemelhança da personagem com a vereadora eleita é a questão que menos importa. O Porta dos Fundos já satirizou sem meias palavras assuntos igualmente espinhosos e fez menção a políticos e marcas famosas de modo claramente depreciativo, sem que isso gerasse mais do que incômodo nas próprias marcas ou nos próprios políticos. A liberdade de expressão inclui esses tons críticos, sem que isso signifique haver necessariamente ilícito. Veja-se, por exemplo, acórdão do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro que negou provimento a recurso do time de futebol Botafogo, que pedia indenização por conta de outro vídeo do Porta dos Fundos:

“Não é fácil delimitar as fronteiras entre o humor, ainda que sarcástico, e o dano moral, cumprindo lembrar que o humor tem inegável relevância coletiva na crítica política e nos costumes, dimensão que não pode ser aqui desprezada. O vídeo denominado Patrocínio ironiza a quantidade de anúncios de empresas de menor porte e menor visibilidade comercial estampados na camisa do time de futebol do apelante, todavia, não se extrai da peça humorística qualquer intenção de macular a sua reputação e, por conseguinte, a sua marca, nem se pode atribuir-lhe a força de impedir um patrocínio master” (TJRJ. 8ª Câmara Cível. Apelação 0418610-21.2015.8.19.0001. Rel. Des. Cezar Augusto Rodrigues Costa, julg. 30/01/2018)

Ou seja, a questão não é tanto a alusão a determinada vereadora ou a determinado partido, mas a conduta atribuída à personagem. O vídeo poderia criticar ideais e propostas do partido, por exemplo. Ainda que atraindo o risco de uma ação indenizatória da própria agremiação política, sabe-se que há uma tendência muito mais segura de se preservar a liberdade de expressão concernente a discursos dessa natureza (como aliás também já abordado antes nesta coluna).

O que as reações unanimemente negativas ao vídeo revelam é a progressiva diminuição da tolerância social quanto ao humor feito às custas de ideias ou condutas discriminatórias com relação a gênero, etnia, orientação sexual, entre outras. Nesse caso, diante do backlash o próprio canal resolveu remover o vídeo, com um reconhecimento de seus problemas em postagem no Twitter, segundo a qual “o vídeo não condiz com o que acreditamos”.

Questão mais complexa é se esse tipo de discussão encontraria lugar adequado no Poder Judiciário. Não seria a primeira vez – veja-se, por exemplo, um precedente do Tribunal de Justiça de São Paulo que aprecia o recurso de uma outra candidata a vereadora, desta vez em Indaiatuba, no interior do estado, que concorreu com o nome de “Alzira Kibe Sfiha”, em alusão à venda dos salgados que era sua fonte de subsistência. O colunista da Folha de S. Paulo José Simão a mencionou em seu conhecido espaço no jornal, afirmando: “Olhando a foto: o quibe e a esfirra dá para comer numa boa, já a Alzira…Rarará!”. Entendeu-se que seria cabível indenização porque “Não há interesse público na piada que ofende a dignidade da autora, expondo-a como sexualmente indesejada, sem que a adjetivação feita à autora tivesse qualquer relação com a campanha eleitoral então em andamento” (TJSP. 4ª Câmara de Direito Privado. Apelação 0017759-92.2012.8.26.0248. Rel. Des. Maia da Cunha, julg. 10/09/2015).

A decisão não é isenta de críticas. Parece considerar que toda a manifestação humorística precisará dizer respeito a um assunto de interesse público – o que, além de tornar o humor um mero braço do jornalismo, deixaria sem lugar desde trocadilhos inocentes até a comédia pastelão. De toda forma, mostra que determinados tópicos sociais até há algum tempo admitidos como “normais” não são mais hoje reconhecidos dessa forma – como, por exemplo, o repúdio a formas de humor baseadas no racismo – e que eventuais abordagens que tentem ressuscitar essa “normalidade humorística de outrora”, por assim dizer, enfrentem ônus argumentativos cada vez maiores, seja nos tribunais de justiça, seja nos tribunais da internet.

João Paulo Capelotti

Doutor e mestre em direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Membro associado da International Society for Humor Studies (ISHS) e da International Society for Luso-Hispanic Humor Studies (ISLHHS). Advogado.