O que nossas cidades expressam?
Eleger a cidade enquanto objeto de reflexão sobre liberdade de expressão põe em evidência a tensão existente entre as diversas formas de experimentar a vida urbana, literalmente conferindo concretude ao debate. O espaço construído e a sociedade que o produz espelham um ao outro. Diante disto, investigar as transformações possíveis nos coloca diante de uma segunda questão: o que nossas cidades podem vir a expressar?
As cidades brasileiras são, sobretudo, a expressão da segregação sócio-espacial. As formas de vida decorrentes encontram-se, evidentemente, em crise. Seja pelo farto excesso, seja pela violenta escassez. A concentração territorial de bens e serviços e a distância entre moradia e emprego geram desequilíbrios estruturais que fazem com que parte significativa da população experimente a urbe praticamente em busca dos meios para sua própria sobrevivência. As manifestações pelo direito à cidade evidenciam a premente necessidade de redesenhar nossas cidades, sem deixar de considerar suas formas de uso e a participação ativa da população neste processo.
Diante deste contexto cabe destacar a terra urbana enquanto campo de investigação. Trata-se de um ponto chave para construirmos cidades mais inclusivas, humanas e solidárias. Seu reordenamento demanda a compreensão dos modos pelos quais os espaços públicos e privados podem ser alicerces para efetivação do bem comum.
Espaço público: democratização de seus usos
O alto índice de congestionamentos nas grandes cidades contraditoriamente oculta o fato de que aproximadamente 70% dos carros transportam apenas uma única pessoa. Veículos estes que permanecem mais de 90% do tempo estacionados. Não se trata de construir mais vias. Apenas com a priorização do transporte público e a ampliação e qualificação de outros modais, como o transporte a pé, por bicicleta e em veículos compartilhados, é possível reduzir as horas despendidas no trânsito e otimizar o espaço da infraestrutura instalada destinando-o para outros usos.
Deste modo criam-se condições para ampliação dos espaços públicos. Faz-se então necessário qualificá-los por meio de intervenções físicas, tais como melhorias na iluminação, na acessibilidade, na arborização, no mobiliário, além de alargamento de passeios. No entanto, tais ações não garantem sua ativação. Dançar, jogar, festejar, debater, manifestar, são formas de uso que tem o potencial de ressignificar e humanizar estes espaços, demandam portanto uma política específica.
A mediação entre espaços públicos e privados também deve ser objeto de atenção. Térreos de edifícios com extensos muros contínuos geram ambientes de vulnerabilidade. A ativação por usos como comércio, serviços e equipamentos institucionais criam dinâmicas que dão vida à superfície urbana.
Propriedade urbana: cumprimento de sua função social
Para que os efeitos da produção imobiliária atendam aos interesses da sociedade foi estabelecido na Constituição Federal o princípio da função social da propriedade. Um conjunto de instrumentos, definidos nos marcos regulatórios municipais de política urbana, devem ser regulamentados e implementados com objetivo de assegurar tal finalidade.
A arrecadação de recursos com a venda do potencial construtivo adicional permite que os ganhos relativos ao processo de produção da cidade sejam revertidos em melhorias urbanas por meio de projetos e obras de habitação social, mobilidade e áreas verdes, especialmente em áreas de maior vulnerabilidade.
Sobre imóveis ociosos inscritos em áreas bem localizadas também incidem instrumentos desta natureza. Para estimular o uso de edifícios desocupados ou terrenos vazios foram estabelecidos prazos para que ações voltadas a sua destinação sejam tomadas. Tal fato tem como um dos objetivos combater o uso especulativo da terra urbana.
Neste quesito, a efetividade de impostos que incidem sobre a propriedade urbana, como o IPTU, também devem ser objeto de reflexão. Será que os valores, a progressividade e a territorialização que se aplicam atendem aos objetivos da política urbana? Os impactos no preço da terra tem a capacidade de interferir nos processo de preservação e qualificação de bairros, é oportuno enfrentar esse debate para além de suas cifras.
Por fim, a expressão livre dos modos de vida urbana depende, dentre outros fatores, do ordenamento do processo de transformação das cidades em direção ao bem comum. O aspecto fundiário dos espaços públicos e privados assume, nesse contexto, papel fundamental. Esta agenda, ironicamente, carece de espaço, caso contrário nossas cidades continuarão a ser a expressão daquilo que são.