O que conservar e como escrever a história?
Diversos intelectuais sugeriram as confusões que o termo “memória”, aplicado à informática, poderiam gerar para a compreensão da memória individual e coletiva. Enquanto naquele campo a ideia de memória se associa ao armazenamento e ao acesso às informações, a memória humana é um processo dinâmico, constrói-se a partir do presente e exerce operações de seleção e ocultação de informações, como melhor lhe convém.
A partir dessa consideração, sugiro entender o Projeto de Lei nº 146, de autoria do senador Magno Malta (Partido da República do Espírito Santo), em tramitação no Senado Federal desde 2007. Tal proposição tem como objetivo normatizar a digitalização e o arquivamento de documentos em mídia ótica ou eletrônica. Embora seja uma medida necessária, tendo em vista o crescente volume de documentos produzidos pelas atividades burocráticas cotidianas do funcionamento do Estado, a medida é extremamente polêmica pelo disposto em seu artigo 2°: “após a digitalização e armazenamento em mídia óptica ou digital autenticada, os documentos em meio analógico poderão ser eliminados por incineração, destruição mecânica ou por outro processo adequado que assegure a sua desintegração, lavrando-se o respectivo termo de eliminação.”
A destruição de documentos sempre gerou controvérsias, ainda que regulada por leis. Em relação à proposição de Malta, o debate ganhou contornos atuais devido aos novos suportes dos documentos, a autenticidade de cópias digitalizadas. As tecnologias que promovem a preservação desses arquivos tornam-se obsoletas muito rapidamente.
Arquivistas e historiadores posicionaram-se contrariamente à medida, chamando-na de projeto “queima de arquivo”. A despeito de uma suposta proteção aos documentos de “valor histórico”, presentes no parágrafo segundo artigo supracitado, que “embora digitalizados, não deverão ser eliminados, podendo ser arquivados em local diverso da sede do seu detentor”, há mais dúvidas que certezas: quem terá prerrogativas para determinar que um documento possui “valor histórico”? Como normatizar a valoração de certos fundos documentais? Frente às inovações teóricas e metodológicas da historiografia ao longo do século XX, onde as mais diversas fontes têm sido utilizadas para a escrita da história, como garantir que determinados papéis, hoje considerados menos valorosos, tenham a mesma classificação no futuro? Isso sem falar na destruição para ocultação de crimes e responsabilidades, como ocorrera durante a ditadura civil-militar brasileira, quando documentos foram destruídos e seus termos de eliminação sequer foram lavrados.
Sem necessariamente nos rendermos à falácia da conservação e preservação de tudo, a tentação da contemporaneidade que conserva, museifica, patrimonializa, sem bem ao certo entender o porquê, apenas para não esquecer, voltamos à consideração inicial desse breve texto, que levanta muito mais questionamentos que aponta certezas ou caminhos: como será nossa memória no futuro? Como será a escrita da história, se o trabalho em arquivos for substituído por uma ferramenta de busca virtual? Quem definirá qual a matéria-prima sobre o passado será conservada para que pensemos a transmissão de memórias e novas gerações escrevam a história, moldando memórias coletivas? O projeto de lei em questão não nos aponta nenhuma resposta.