Imagem: marcokalmann via Visual Hunt / CC BY-NC-ND

Em dezembro de 2019, chargistas da Folha de S. Paulo publicaram obras com críticas à atuação da Polícia Militar na favela de Paraisópolis, na capital paulista, em episódio que culminou com a morte de nove jovens. Seis meses depois, em junho de 2020, uma associação de policiais chamada “Defenda PM” ingressou com pedido de explicações perante o Judiciário. A reação de cartunistas, em carta aberta publicada por diversos veículos de comunicação, é de que isso configuraria censura.

O “pedido de explicações”[i] é previsto no Código Penal como antecedente de uma ação que discuta crimes de calúnia, injúria e difamação (os chamados “crimes contra a honra”). Nesse procedimento preparatório, a pessoa ofendida pede que o suposto ofensor se explique, que esclareça o que realmente quis dizer e se teve ou não a intenção de ofender a honra alheia. Por exemplo: alguém utiliza uma palavra com duplo sentido para se referir a outra pessoa[ii].  No caso das charges, o pedido tem caráter um tanto inusitado, já que as charges, como já dito em outra oportunidade, operam por meio de recursos como metáforas, condensações, alusões. E um de seus pontos centrais é justamente o esforço que o leitor deve fazer para juntar todas as pontas – as palavras, os traços, as cores etc – e entender qual é a mensagem crítica ali veiculada, que, nesse caso, era bastante evidente[iii]. Não há, na verdade, nada a ser explicado.

O Código Penal brasileiro é de 1940 – ou seja, veio à luz em plena ditadura Vargas, no período conhecido como Estado Novo (1937-1945). Foi parcialmente reformado em 1984, em meio a outra ditadura. A própria existência dos crimes contra a honra no Código Penal soa um tanto atrasada e inócua. Em primeiro lugar, porque situações como essas são melhor servidas por ações indenizatórias, regidas pelo direito civil, que podem resultar em indenização por dano moral, ou mesmo por pedido de direito de resposta. Em segundo lugar, porque, as penas de detenção previstas para os crimes contra a honra são pequenas[iv], que, em regra, acabam sendo convertidas para medidas alternativas, como a prestação de serviços comunitários e a limitação de fim de semana (arts. 43 e 44 do Código Penal).

No entanto, é certo que a mera existência de um processo penal, com a possibilidade de uma pena no fim da jornada, é capaz de tirar o sono de quem é réu. Não só pelo medo da pena, que de qualquer forma é uma consequência desagradável, mas também por todo o transtorno que isso gera, desde a contratação de advogado até o comparecimento a audiências com interrogatórios e inquirição de testemunhas. Há, em resumo, portanto, um efeito de intimidação que decorre da existência do próprio processo penal, ou do procedimento que lhe é preparatório.

Isso tudo não configura censura – ou pelo menos não no sentido clássico do termo, que pressupõe uma restrição prévia à manifestação do pensamento[v], na medida em que os chargistas já puderam expressar suas opiniões e materializá-las em obras que congregam desenho e palavra com viés crítico. O que o “pedido de explicações” aos chargistas da Folha buscava causar é o chamado “chilling effect” (efeito de resfriamento), isto é, a provocação de autocensura – de modo que os chargistas passassem a pensar duas vezes antes de publicar novas charges críticas à atuação da PM.

Assim, em que pese não se possa falar propriamente em censura, trata-se de uma situação em que os instrumentos oferecidos pelo direito são manipulados para se atingir um efeito de intimidação, com a finalidade de, indiretamente, inibir futuras condutas reputadas indesejadas[vi]. É a utilização do processo como pena – o que, lamentavelmente, não é novidade.

Dois exemplos do passado são eloquentes para demonstrar essa afirmação. O primeiro deles é o conjunto de 76 ações[vii] ajuizadas por policiais militares de Diadema contra a Rede Globo por conta de uma esquete do Casseta & Planeta: Urgente!, que criticava extorsões e violências praticadas na Favela Naval, em Diadema, na região do ABC paulista, no ano de 2000. O segundo é o conjunto ainda mais expressivo de 202 demandas[viii] ajuizadas por policiais gaúchos contra jornais da região metropolitana de Porto Alegre por conta de charge na qual um policial era conduzido pela coleira por um cachorro – tratava-se, mais uma vez, de crítica ao uso exagerado da força na contenção de protestos de trabalhadores da indústria de calçados e de briga de torcidas, no intervalo de poucos dias, no ano de 2005. Ainda que nenhuma dessas quase 300 ações tenha sido julgada procedente, é fato que elas geraram custos significativos para os respectivos veículos de comunicação e assoberbaram os respectivos Tribunais de Justiça com processos idênticos e manifestamente descabidos. No entanto, nenhuma sanção por abuso de direito de ação foi adotada.

Num mundo ideal, as ações penais (de crimes contra a honra) e civis (com pedido de indenização e direito de resposta) serviriam para lembrar que toda manifestação do pensamento tem consequências e que abusos podem ser punidos de uma forma ou de outra. O que a prática tem revelado, contudo, é a utilização de mecanismos jurídicos legítimos para um propósito contrário ao próprio ordenamento, que é a promoção do (auto)silenciamento. O irônico é que, no mais das vezes, acaba ocorrendo o oposto, e o material objeto da ação tem mais repercussão do que teria caso a tentativa de supressão não existisse.

Acima disso, o que os três casos acima revelam, do mais recente aos mais antigos, é a aparente incapacidade da corporação ou, melhor, de membros específicos ou de associações de classe, lidar com as críticas que lhe são dirigidas, sejam elas justas ou não. A opção nesses três casos, lamentavelmente, pareceu ter sido por não prosseguir com o debate em público, mas por resfriá-lo até que o dissenso se transformasse em concordância. Não foi o que ocorreu. Mas a repetição de condutas semelhantes preocupa e requer vigilância permanente da sociedade.

[i] O artigo que dá suporte ao pedido tem a seguinte redação: “Art. 144 – Se, de referências, alusões ou frases, se infere calúnia, difamação ou injúria, quem se julga ofendido pode pedir explicações em juízo. Aquele que se recusa a dá-las ou, a critério do juiz, não as dá satisfatórias, responde pela ofensa” (Cf. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848compilado.htm).

[ii] “A ofensa pode ser equívoca (não manifesta, encoberta, ambígua), que quanto ao seu conteúdo, que quanto ao seu destinatário. É o que ocorre quando há o emprego de palavras de duplo sentido, frases vagas ou reticentes, alusões veladas ou imprecisas, referências dissimuladas, antífrases irônicas, circunlóquios ou rodeios de camuflagem. (…) Em tais casos de equivocidade, a lei permite à pessoa que se julga ofendida pedir sejam dadas explicações em juízo. (…) O pedido de explicações é preparatório, e não excludente do oferecimento da queixa” (HUNGRIA, Nélson. Comentários ao Código Penal. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1953. v. 6. p. 124-126, passim)

[iii] No mesmo sentido, escreveu a ombudsman do jornal, Flávia Lima: “Nos desenhos de humor, o essencial é o aspecto alegórico, metafórico, figurado do comentário crítico—de imediata compreensão” (Os ataques aos chargistas. Folha de S. Paulo, 20.06.2020. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/flavia-lima-ombudsman/2020/06/os-ataques-aos-chargistas.shtml).

[iv] As penas cominadas para os crimes de calúnia são: detenção, de seis meses a dois anos, e multa; para difamação: detenção, de três meses a um ano, e multa; e para injúria, detenção de um a seis meses, e multa.

[v] Censura prévia, ou “censura propriamente dita”, “consiste na sujeição a um controle preventivo das mensagens cuja comunicação se pretende realizar” (MACHADO, Jónatas. Liberdade de expressão: dimensões constitucionais da esfera pública no sistema social. Coimbra: Coimbra Editora, 2002. p. 491-492).

[vi] Kenarik Boujikian chegou à mesma conclusão que se defende aqui: “No caso dos chargistas interpelados e do possível indiciado, nos deparamos com um instrumento inibitório da liberdade de expressão, o acosso judicial. Ou seja, a perseguição pela via judicial, consistente em pressão realizada, mediante ações judiciais, de natureza criminal ou civil, que objetivam paralisar a ação e o pensamento, com o potencial de gerar a autocensura, não apenas aos envolvidos diretamente” (Censura e as charges da vida. Folha de S. Paulo, 22.06.2020. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2020/06/censura-e-as-charges-da-vida.shtml).

[vii] TJSP. Autos nº 0113896-22.2003.8.26.0000, 9062529-68.2001.8.26.0000, 9061427-74.2002.8.26.0000, 9105146-09.2002.8.26.0000, 9069061-24.2002.8.26.0000, 0088388-40.2004.8.26.0000, 9106838-77.2001.8.26.0000, 0033307-14.2001.8.26.0000, 0075685-48.2002.8.26.0000, 9064623-86.2001.8.26.0000, 9143409-13.2002.8.26.0000, 0097475-54.2003.8.26.0000, 0104488-07.2003.8.26.0000, 9224191-07.2002.8.26.0000, 9145033-97.2002.8.26.0000, 0110496-97.2003.8.26.0000, 9068946-37.2001.8.26.0000, 0045868-70.2001.8.26.0000, 9145132-38.2000.8.26.0000, 9105701-89.2003.8.26.0000, 9131183-10.2001.8.26.0000, 9042998-93.2001.8.26.0000, 9048633-55.2001.8.26.0000, 9194512-59.2002.8.26.0000, 90429k98-93.2001.8.26.0000, 9091807-17.2001.8.26.0000, 9084164-42.2000.8.26.0000, 9145791-47.2000.8.26.0000, 9098901-50.2000.8.26.0000, 9124835-10.2000.8.26.0000, 9150031-79.2000.8.26.0000, 9051720-53.2000.8.26.0000, 9204475-62.2000.8.26.0000, 9045758-49.2000.8.26.0000, 9176379-37.2000.8.26.0000, 9143193-23.2000.8.26.0000, 9099989-26.2000.8.26.0000, 9084149-73.2000.8.26.0000, 9097126-97.2000.8.26.0000, 9173667-74.2000.8.26.0000, 9095092-52.2000.8.26.0000, 9052627-28.2000.8.26.0000, 9087815-48.2001.8.26.0000, 9109894-21.2001.8.26.0000, 9200278-64.2000.8.26.0000, 9048424-23.2000.8.26.0000, 9097922-88.2000.8.26.0000, 9131369-28.2004.8.26.0000, 9169925-41.2000.8.26.0000, 9097953-11.2000.8.26.0000, 9133341-38.2001.8.26.0000, 9153439-39.2004.8.26.0000, 9118927-98.2002.8.26.0000, 9118927-98.2002.8.26.0000, 9105073-37.2002.8.26.0000, 9174863-16.1999.8.26.0000, 9066380-86.1999.8.26.0000, 9041393-83.1999.8.26.0000,                0078206-68.1999.8.26.0000, 0070646-75.1999.8.26.0000, 9157298-39.1999.8.26.0000, 9043783-26.1999.8.26.0000, 9132219-58.1999.8.26.0000, 9110300-13.1999.8.26.0000, 9177539-34.1999.8.26.0000, 9110115-72.1999.8.26.0000, 9154334-73.1999.8.26.0000, 9110016-05.1999.8.26.0000, 9131569-11.1999.8.26.0000, 9107389-28.1999.8.26.0000, 9087381-59.2001.8.26.0000, 9175341-24.1999.8.26.0000, 9075795-93.1999.8.26.0000, 9061737-22.1998.8.26.0000 e 9091143-88.1998.8.26.0000.

[viii] TJRS. Autos nº 70044551489, 70027976034, 70029624277, 70029767415, 70027935410, 70028999563, 70022562482, 70022396840, 70022485668, 70029322203, 70020892162, 70020892113, 70028206266, 70027828508, 70028036440, 70026323675, 70025155151, 70025014846, 70027860634, 70028106987, 70026705459, 70026209445, 70025281346, 70026562165, 70026776559, 70022278469, 70025598624, 70026006999, 70026008730, 70021835707, 70022481857, 70021995980, 70026323741, 70026323907, 70024891269, 70022319982, 70026001974, 70026008698, 70022582746, 70022485585, 70022294797, 70022486757, 70022294771, 70022294722, 70022469985, 70022294755, 70022484265, 70022294813, 70024251167, 70025130618, 70024993446, 70023918121, 70025456203,  70022870232, 70024853863, 70024863714, 70024456485, 70024780892, 70024145104,  70024572216,  70022485270,  70021833488,  70022146708, 70022147557,  70024047599, 70024181422, 70024116923, 70020865457, 70019688373, 70021998521, 70023594088,  70022885099, 70022991277, 70023287444, 70023310196, 70023697089, 70020865564, 70023540461,  70022863294, 70021832720, 70023354111, 70023311681, 70022486328, 70022582142,  70020199766, 70023004997, 70023307531,  70022486864, 70022409791,  70022277487,  70022893564,  70022463657, 70022559819, 70023304371, 70023000599, 70022487938, 70023052921, 70022288781, 70022699953,  70022484794, 70022910129, 70021940309, 70021851159, 70021682265, 70022992317, 70022485320,  70021995634,  70021929401, 70021939731, 70022797815, 70022487458, 70022489827, 70021936257, 70022146591, 70021948609,  70021924618,  70019668961,  70020285029, 70019669282, 70021984372, 70020136578, 70020142212, 70021953906, 70021924600,  70021864723, 70021847439,  70021929385, 70021146576, 70021941992,  70021834734, 70021820048, 70021976154, 70020133716, 70021864665,  70021854724,  70021845078, 70021855853, 70021992912, 70021930482, 70019885250, 70020205381, 70021136361,  70021138805, 70021139183, 70021138292,  70021138375, 70021138524, 70021137518, 70021137443, 70021138896, 70021137146, 70021135488, 70021137336, 70021137609, 70021139118, 70021135645, 70021137385, 70021138441, 70021138599, 70021138698, 70021137211,  70021136189, 70020167151, 70020870036, 70020882874,  70020144887,  70019683754,  70019672674, 70019674357, 70019694140, 70019683598, 70019688233, 70019683093, 70019668987, 70019687771, 70019683325, 70020530598, 70019683051,  70019661222, 70019676907, 70019674969, 70019692128, 70019675099, 70019714799, 70019675156, 70019675420, 70019688977, 70020207544, 70019674852, 70019705888,  70019675594,  70019675511, 70019665900, 70020131843, 70019674423,  70019669852,  70019676758, 70019696459, 70019665736, 70019677269, 70020146262, 70019674548, 70019667005.

João Paulo Capelotti

Doutor e mestre em direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Membro associado da International Society for Humor Studies (ISHS) e da International Society for Luso-Hispanic Humor Studies (ISLHHS). Advogado.