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“O humor não salva, mas alivia”[1]. A frase, do psicanalista gaúcho Abrão Slavutzky, parece perfeita para estes tempos em que o noticiário virou um filme de ficção científica e nada mais se fala além da propagação do coronavírus pelo mundo. Os memes que têm varrido a internet – e as contas de WhatsApp – incluem desde trocadilhos com a famosa marca de cerveja até brincadeiras com estereótipos culturais e regionais (como aquele que traz uma expressão de alívio, atribuída aos curitibanos, diante das recomendações médicas para evitar contatos pessoais).

Outras peças de humor, principalmente as de algumas semanas atrás (antes das primeiras mortes serem confirmadas por aqui[2]), faziam troça da suposta pouca nocividade do vírus diante de doenças tropicais como a dengue e o zika. O fenômeno não é observável apenas no Brasil – embora, por certo, adquira coloridos locais de modo bastante notável. Rir a respeito da água duvidosa que sai das torneiras do interior dos Estados Unidos ou do Rio de Janeiro, que geraria uma suposta imunidade contra a covid-19, envolve a mesma lógica. Como sugere Kriston Capps, esse tipo de humor guarda uma certa ternura a respeito de onde viemos; parece dizer que, graças ao que nos é particular (e portanto nos diferencia da multidão anônima das estatísticas), resistiremos[3].

Slavutzky, em sua obra Humor é coisa séria, aponta para esse efeito terapêutico do humor, de que muito se fala mas ainda pouco se compreende. Seu livro é pontilhado de diversos exemplos (como o de judeus sobreviventes do Holocausto graças a uma incrível disposição para o riso nas circunstâncias mais adversas) que ajudam a desenvolver a síntese que abriu esta coluna: embora o humor não possa, por si só, representar a cura de todos os males, ele torna mais leve e suportável a nossa vivência cotidiana.

No entanto, como também deve ser de fácil percepção, o humor produzido a respeito da pandemia não tem servido apenas para a propagação de manifestações humorísticas inofensivas. Memes também têm sido usados para propagação de discurso de ódio de viés étnico contra chineses e, acima de tudo, como formato eficaz para a propagação de fake news a respeito da transmissão e do tratamento do vírus.

Um dos memes mais famosos da pandemia utiliza imagens de um vídeo de uma youtuber chinesa tomando sopa de morcego, acompanhadas de adjetivos pejorativos. O que foi disseminado como sendo algo comum e recente na região de Wuhan na verdade eram cenas gravadas em 2016 em Palau, arquipélago do Oceano Pacífico, em que a apresentadora mostra o lado exótico da culinária local. Segundo apurado pela BBC, a famigerada sopa não é particularmente comum na China, onde ainda estão sendo investigadas as origens da epidemia. Ainda assim, como a verdade a respeito do consumo de morcego foi muito menos divulgada que o tal vídeo e os memes que se fizeram dele, não demorou para que o preconceito virtual ganhasse o mundo real. Nesse sentido, têm sido registrados em várias partes do mundo episódios de agressões a orientais, como o ocorrido no final de fevereiro em Londres.

Ninguém está imune à propagação de fake news. Consta que até o presidente da Argentina, Alberto Fernández, falou, em entrevista coletiva, sobre o suposto poder curativo de bebidas quentes porque o vírus não gostaria de calor. A informação falsa, que provavelmente foi recebida também pelo leitor desta coluna em grupos de WhatsApp da família, não tem embasamento científico, segundo a Organização Mundial da Saúde. Reiteram-se, por isso, as recomendações de checagem em portais especializados como a Agência Lupa antes do encaminhamento de qualquer material. Vale mesmo duvidar, e uma boa prova de que a maioria das mensagens que circulam por WhatsApp trazem informações falsas vem de um dado divulgado pelo Ministério da Saúde no Brasil. O órgão governamental recebeu quase 9.900 mensagens entre 21 de janeiro e 12 de março, questionando a autenticidade de informações sobre o novo coronavírus. No entanto, destas, apenas 495 (ou seja, cerca de 5%) traziam informações verdadeiras. A quantidade de desinformação circulando nas redes é tão alarmante quanto as do vírus mundo afora.

O que nos leva, por fim, a um terceiro aspecto pelo qual o humor pode ser analisado em meio à pandemia: suas funções crítica e educativa. É possível observar diversas manifestações humorísticas que trazem compilações de músicas para auxiliar na contagem dos vinte segundos recomendáveis para a lavagem das mãos[4]. Outros, no melhor espírito ridendo castigat mores – rindo se castigam os costumes, em latim – carregam observações ácidas sobre o modo como a sociedade tem lidado com a epidemia. Como exemplo, o meme que, utilizando o famoso formato do rapaz que entorta a cabeça para admirar a mulher de vestido vermelho passando enquanto sua namorada reage indignada, critica a obsessão de algumas pessoas com a compra e a utilização de máscaras (já esgotadas ou muito mais caras que o habitual) – sendo que o ideal é cuidar mesmo da higiene das mãos, desinfectar objetos e evitar contato social.

[1] SLAVUTZKY, Abrão. Humor é coisa séria. Porto Alegre: Arquipélago Editorial, 2014. p. 228.

[2] Surgiram, obviamente, memes a respeito do riso nervoso provocado pela chegada do vírus ao país. Por exemplo: https://twitter.com/silviabttgr/status/1237821451215998977.

[3] “Todas elas (…) têm uma certa ternura sobre o lar. É como se as pessoas estivessem hasteando uma bandeira, identificando experiências que podem nos distinguir em meio à pandemia que ameaça reduzir populações humanas para números: os infectados, os recuperados, os falecidos” (CAPPS, Kriston. These Coronavirus Immunity Jokes Are Love Letters to Home. CityLab, 13.03.2020). Disponível, em inglês, em: https://www.citylab.com/life/2020/03/coronavirus-immunity-meme-covid-19-jokes-social-media/607756/. No original: “All of them (…) display a tenderness about home. It’s as if people are raising a flag, identifying the experiences that distinguish us in the face of a pandemic that threatens to reduce human populations to numbers: the infected, the recovered, the deceased”

[4] O mesmo mote foi utilizado pela banda Rage Against the Machine no Twitter: o tempo de lavar as mãos é o mesmo necessário para cantar uma das músicas do grupo: https://twitter.com/RATM/status/1237036386886303744.  Ver a respeito, também (em inglês), outra compilação que traz até mesmo os famosos versos de Macbeth, de Shakespeare, para serem declamados na pia (https://www.vox.com/2020/3/9/21162031/wash-your-hands-coronavirus-memes).