Ilustração: Bia Leme

Sabe-se que a China exerce forte censura política de atos e manifestações contrárias ao regime lá colocado em prática. Do mesmo modo, não é novidade para ninguém que Estados como Egito e Arábia Saudita censuram e intimidam pessoas com base em critérios religiosos.

O que talvez passe despercebido da população em geral é a constatação de que o Brasil pode, atualmente, ser caracterizado como um país de forte (arrisco a dizer fortíssima) censura judicial. Aqui, tudo que envolve o Judiciário é dotado de números descomunais. Pode-se dizer, com alguma tranquilidade e mesmo na ausência de dados públicos a esse respeito, que a grande maioria (mais da metade, com folga) dos processos judiciais respondidos por empresas com atuação na internet tramita no Brasil.

As justificativas para apresentação de tais demandas são as mais variadas. Por uma questão de brevidade, a presente coluna irá se concentrar em uma delas: a vedação do anonimato. O argumento em questão encontraria base no art. 5º, IV, do Constituição Federal, que descreve que as pessoas são livres para manifestar pensamento no Brasil, “sendo vedado o anonimato”. Então, com base nisso, pessoas pedem a remoção de informações da internet simplesmente descrevendo que a postagem seria anônima, que isso violaria a nossa Constituição e que, portanto, a censura judicial deveria ser colocada em prática nessa situação mediante remoção de materiais do ambiente virtual.

Agora, o que seria esse propagado anonimato na internet? Existe um procedimento adequado para descoberta de autoria de condutas no ambiente virtual? Seria ele legalmente previsto? Será que, então, toda e qualquer postagem de perfis “da deprê”, “mil grau”, ou até mesmo de personagens como “Chapolin sincero” ou “Gina indelicada”, poderia ser excluída simplesmente com base nesse argumento? Será que, e aqui indo um pouco além, dizer na internet que me chamo “Pedro Paulo” representa uma garantia de que, de fato, sou essa pessoa?

São essas as perguntas que a coluna irá tentar responder sob uma perspectiva pragmática. Caso alguém tenha interesse em aprofundar as pesquisas sobre o tema, devo dizer que, há pouco mais de 2 anos, escrevi artigo de opinião em que defendi ser necessário “repensar as noções atinentes ao anonimato na internet”. Em 2017, a Fabiana Siviero publicou uma coluna aqui, no Dissenso.org, criticando o que ela chamou de perspectiva de “vedação genérica ao anonimato”. Recentemente, ainda, o Prof. Fernando Gajardoni disponibilizou artigo intitulado “direito digital e ações contra réus indeterminados no novo CPC”.

A citação desse texto é pertinente porque o trabalho em questão revela justamente aquilo que se pretende defender na presente coluna: sim, o Código de Processo Civil e, mais especificamente, o Marco Civil da Internet (Lei 12.965/2014) contêm previsões a respeito do procedimento legal apto a possibilitar a descoberta da autoria de atos na internet e, por tal razão, é absolutamente equivocado justificar a censura pura e simplesmente em um anonimato ainda não comprovado de maneira definitiva. O ônus argumentativo a ser satisfeito por decisões (principalmente liminares) que impõem censura é mais alto, e deve considerar o conteúdo do material em si analisado.

Para descobrir quem praticou determinado ato na internet, deve-se, primeiramente, diferenciar as atribuições do provedor de aplicação e do provedor de conexão à internet. Empresas como Facebook, Twitter e Google oferecem ferramentas que possibilitam a inserção de postagens no ambiente virtual e são tidas, nos termos do Marco Civil da Internet, como provedores de aplicações da internet. Nos termos do que dispõe o artigo 5º, VII, da referida legislação, uma aplicação da internet é caracterizada como “o conjunto de funcionalidades que podem ser acessadas por meio de um terminal conectado à internet”. Para que este terminal (por exemplo, um computador pessoal, um tablet ou um smartphone) conecte-se à internet, o usuário que deseja acessar a rede virtual deverá valer-se dos serviços oferecidos por um provedor de conexão à internet, serviço este usualmente prestado por empresas de telefonia.

Enquanto provedoras de aplicações da internet, tais empresas se sujeitam, nos termos do artigo 15 do Marco Civil da Internet, à necessidade de guarda de registros de acesso a aplicações de internet, que, na dicção do artigo 5º, VIII, da mencionada lei, correspondem ao “conjunto de informações referentes à data e hora de uso de uma determinada aplicação de internet a partir de um determinado endereço IP”. Com o recebimento do dado, a parte interessada deverá buscar informações a respeito do autor da alegada ofensa junto ao provedor de conexão à internet. Boa parte do procedimento ora descrito encontra previsão nos arts. 13, 15 e 22 do Marco Civil da Internet (MCI).

O que precisa ficar claro a partir desse contexto é que, no âmbito das aplicações da internet, a identificação de pessoas que publiquem conteúdo na internet é realizada a partir do registro de IP do autor do conteúdo infringente, e não pela denominação de perfil ou outras características do usuário. Até por tal razão, o art. 11 do Decreto 8.771/2016, que regulamenta o Marco Civil da Internet, ao fazer referência ao art. 10 do MCI, que trata especificamente dos provedores de conexão à internet, expressamente impõe a esses, e não aos provedores de aplicações, a guarda de dados cadastrais dos usuários da internet, assim entendidos a filiação, o endereço e a qualificação pessoal dos usuários.

É incorreto imaginar, portanto, que determinadas características de um perfil ou canal da internet poderiam torná-lo anônimo. É por tal razão que páginas “mil grau”, “da depressão”, ou perfis como “Gina indelicada”, “Chapolin sincero”, dentre outros, não podem ser retiradas do ar pela justificativa do anonimato. É possível, ainda, que um canal do YouTube ou blog com o nome de “Rafael Silva”, por exemplo, tenha seu conteúdo postado por “Regina Almeida”. É concebível, do mesmo modo, que o usuário responsável pelo canal do YouTube “São Paulo” seja facilmente identificado a partir da apresentação dos registros de IP do usuário que publica o conteúdo no ambiente virtual.

É precisamente por tal fundamento que censurar aprioristicamente pessoas na internet pela justificativa do anonimato representa medida equivocada. A liberdade de expressão, enquanto direito fundamental, impõe a quem pretende censurar (demandante) um ônus argumentativo altíssimo, que não é ultrapassado, ao menos em hipóteses de urgência, pura e simplesmente com a justificativa do anonimato. Fosse assim, a legislação brasileira não iria prever qual a sequência de atos necessária para a descoberta segura de autoria de atos na internet.

Aqui, e já a título de encerramento, uma última pergunta e resposta. É possível que, ao final do processo, fique provado que a pessoa que inseriu o material na internet assim o fez de uma biblioteca pública e que, por tal razão, não seria possível desvendar sua autoria? A resposta é evidentemente positiva, mas isso não significa dizer que a instrução processual deverá tramitar sob o manto da censura fundada na possibilidade de anonimato. A lógica, aqui, é a inversa, porque a prevalência constitucionalmente instituída é da liberdade de expressão.