Ilustração: João Grego

O desempenho da seleção brasileira afeta a autoestima nacional. Fomos eliminados mais uma vez nas quartas-de-final, a terceira vez nas últimas quatro Copas. Em 2014, foi pior: caímos um passo à frente, nas semifinais, mas abatidos por um vergonhoso 7 x 1. Desta vez, não houve vexame e o bom senso prevaleceu na reação à derrota: Tite fez um bom trabalho, que deve ser mantido; trata-se de perseverar na escolha que alia talento à organização. Sinal de amadurecimento. Estamos finalmente nos libertando da ciclotimia futebolística de nos considerarmos ora os eternos “melhores do mundo”, ora irremediáveis “vira-latas”. Tomara a lição sirva para outros campos da ação coletiva.

Ninguém expressou melhor a nossa ciclotimia futebolística do que Nelson Rodrigues, que fez de suas crônicas esportivas um gênero literário no qual continua inigualável. Quando o “escrete canarinho” ganhou sua primeira Copa do Mundo, em 1958, ele assim se exprimiu sobre o grande acontecimento:

“Dizem que o Brasil tem analfabetos demais. E, no entanto, vejam vocês: — a vitória final, no Campeonato do Mundo, operou o milagre. Se analfabetos existiam, sumiram-se na vertigem do triunfo. A partir do momento em que o rei Gustavo, da Suécia, veio apertar as mãos dos Pelés, dos Didis, todo mundo, aqui, sofreu uma alfabetização súbita. Sujeitos que não sabiam se gato se escreve com “x” não iam ler a vitória no jornal. Sucedeu essa coisa sublime: — analfabetos natos e hereditários devoravam vespertinos, matutinos, revistas, e liam tudo com uma ativa, uma devoradora curiosidade, que ia do “lance a lance” da partida até os anúncios de missa. Amigos, nunca se leu e, digo mais, nunca se releu tanto no Brasil.

E a quem devemos tanto? Ao escrete, amigos, ao escrete, que, hoje, é o meu personagem da semana, múltiplo personagem. Personagem meu, do Brasil e do mundo. Graças aos 22 jogadores, que formaram a maior equipe de futebol da Terra, em todos os tempos, graças a esses jogadores, dizia eu, o Brasil descobriu-se a si mesmo. Os simples, os bobos, os tapados hão de querer sufocar a vitória nos seus limites estritamente esportivos: Ilusão! Os 5 x 2, lá fora, contra tudo e contra todos, são um maravilhoso triunfo vital de todos nós e de cada um de nós.”

Para Nelson Rodrigues, o verdadeiro triunfo vital não era a vitória sobre os outros países e seleções, mas a superação do “complexo de vira-lata”, um sentimento atávico de inferioridade frente ao mundo que acometia o Brasil subdesenvolvido dentro e fora dos gramados, agravado pela trágica derrota para o Uruguai na final da Copa do Mundo de 1950, em pleno Maracanã. Oito anos depois, ao vencer nada menos que cinco seleções europeias em campos europeus e levantar a Taça Jules Rimet (francês, presidente da FIFA que idealizou as Copas do Mundo), o Brasil deixava de ser um vira-lata para se tornar a maior equipe de futebol da Terra. Por esse feito extraordinário, que só os “tapados” julgavam limitar-se à esfera esportiva, operou-se o milagre da alfabetização instantânea de milhões de brasileiros.

Quarenta anos depois, constatamos que o Brasil manteve a condição de maior equipe de futebol da Terra por doze anos, entre 1958 e 1970, quando venceu três das quatro Copas disputadas. Depois, continuamos entre os melhores, ganhando dois dos doze títulos mundiais, mas longe do predomínio inconteste dos “anos de ouro” do futebol brasileiro.

Já na grande área da educação o milagre permaneceu restrito à esfera da fantasia vital de Nelson Rodrigues. Houve avanços, sim, mas foram mais lentos do que o necessário para que o Brasil se aproximasse dos países mais desenvolvidos e mesmo da maioria dos seus vizinhos sul-americanos. Temos hoje o mesmo percentual de analfabetos apresentado pelos Estados Unidos em 1900 e pela Argentina em 1930. O número de anos de escolarização dobrou nos últimos trinta anos, mas o percentual da população brasileira economicamente ativa que não completou sequer o ensino médio continua superior a 40%, menos da metade do que se observa nos países desenvolvidos. Nos exames do PISA, o desempenho dos alunos(as) brasileiros(as) em matemática, ciências e interpretação de texto é sofrível. Entre os cerca de 70 países participantes, estamos entre os piores.

Não, não somos “vira-latas” irremediáveis. É viável alterar esse quadro. O Brasil não aplica poucos recursos públicos em educação. Aplica-os, isto sim, desproporcionalmente em favor do ensino superior e em detrimento do ensino básico. Também não existe segredo sobre as táticas mais eficientes para virar o jogo da educação no Brasil: melhor formação dos professores, maior autonomia para as escolas, não ingerência política na escolha dos diretores, etc. O que falta então?

Falta ainda à sociedade brasileira o empenho determinado a se lançar nessa batalha de esforços imediatos e vitórias a médio prazo. Teremos de ser capazes de colocar entre parênteses as disputas ideológico-morais e os interesses corporativos para nos concentrar naquilo que é essencial ao país: oferecer real igualdade de oportunidades para que cada um(a) no Brasil desenvolva o seu potencial como indivíduo e membro da coletividade, e assim amplie seu campo de escolha como pessoa, cidadão e profissional.

A educação básica de qualidade é o principal campo desse jogo em que pode e deve haver só vencedores. Jogo em que não se produzem feitos milagrosos, mas avanços decorrentes de determinação, perseverança, talento individual e organização coletiva. Como no futebol.

Sergio Fausto

Sergio Fausto é Superintendente Executivo da Fundação Fernando Henrique Cardoso, co-diretor do Projeto Plataforma Democrática e co-editor da série de livros "O Estado da Democracia na América Latina". Faz parte do Grupo de Análise da Conjuntura Internacional da Universidade de São Paulo (Gacint-USP) e integra a equipe de colaboradores do Latin American Program do James Baker Institute for Public Policy, da Rice University. Fausto escreve regularmente para o jornal O Estado de S.Paulo e para o Infolatam – Información y Análisis de América Latina.