Ilustração: Paola Hiroki

Empresas brasileiras usam a Justiça para calar queixas de consumidores nas redes sociais e tentam bloquear até sites de serviços de reclamações

O brasileiro está entre os povos que mais usam rede social. Isso é celebrado pelas empresas, especialmente lojas que usam o canal para interagir com os consumidores e vender mais. Cases como os milhões de seguidores do pinguim do Ponto Frio, os mais de R$ 100 milhões vendidos pela Netshoes nas redes sociais ou a visita do CEO da Oppa a uma consumidora insatisfeita são amplamente divulgados como uma mostra da atenção das companhias a esse canal. Há, no entanto, um lado pouco divulgado desse relacionamento digital: ações na justiça para calar usuários que reclamam de marcas.

Queixas sobre produtos, entrega, críticas ao atendimento, sátiras e páginas criadas para reunir reclamações têm sido alvo das equipes jurídicas de uma série de companhias. Identificamos dezenas de casos do tipo a partir de um levantamento com dados do projeto Ctrl+X, da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), iniciativa que monitora tentativas judiciais de impedir a divulgação de informações. Cerca de 60% das mais de 3 mil ações mapeadas pelo projeto são compostas por políticos tentando limpar a sua reputação. Começamos recentemente a classificar de onde vêm as ações restantes, e identificamos que um terço tem empresas como autoras.

São processos que, em geral, pedem a exclusão de comentários em redes sociais que teriam atingido a “honra das empresas”. Além de indenização por danos morais e a supressão de algum post, as empresas muitas vezes também pedem censura, ou seja, que a justiça determine a proibição de que usuários façam comentários que possam ofendê-las.

Em águas turvas

Exemplo claro disso é uma ação movida pela Yamaha em 2014 pedindo a suspensão da conta de Facebook do usuário Cacicleide Andrade Ribeiro. Cacicleide comprou um motor de popa da empresa e passou a se queixar constantemente do produto no Facebook. A Yamaha anexou ao processo uma série de posts que repetem mais ou menos a mesma a crítica virulenta:

“VAMOS LÁ !!! Tem mais um monte de trouxa como eu que acha que 04 tempo é uma maravilha…com 06 meses começa a dor de cabeça…01 ano a insatisfação só gastos e problemas e antes de 02 anos vc quer sair da bomba ou por fogo nela…porque a merda NÃO TEM GARANTIA!!! E eles não assumem que é defeito de fabricação…Só tem um tipo de 04 tempo que não dá problema; aquele que o cara não usa…o chamado samambaia…só fica na garagem!!!”

Após a Yamaha alegar que as repetidas críticas de Cacicleide causam dano à reputação da empresa, a juíza Adriana Bertier Benedito entendeu que o consumidor usou de “forma abusiva” o seu direito de reclamar, suspendeu sua conta do Facebook e o censurou, determinando que ela se “abstenha de emitir declarações ofensivas à imagem da requerente, especialmente em redes sociais”. Ou seja, num estado de direito democrático, a juíza achou razoável impedir uma pessoa fazer críticas a uma marca.

Propriedade > Intelectual

Não faltam casos parecidos. A construtora Gafisa, por exemplo, resolveu processar o Facebook em dezembro de 2015 por uma página chamada “Gafisa Abusiva”. A empresa anexou aos autos um post com um smiley e os dizeres: “Sorria, você está sendo enganado”. Acompanhando a postagem, o texto: “Escreva nos comentários como a Gafisa enganou você. Seja cláusulas abusivas, extorsão, mal acabamento, atraso na entrega da obra, propaganda enganosa, ou o que for.

Na descrição, a página informava ser uma dedicada a pessoas que, “assim como como eu, foram lesadas de alguma forma pela construtora Gafisa”. Havia ainda um logotipo da Gafisa com um “X” vermelho por cima. Por conta disso, a empresa alegou uso indevido da sua marca e conseguiu que a juíza Maria Fernanda Belli determinasse a retirada da página do ar e que o usuário fosse bloqueado no Facebook, “a fim de impedir a reincidência das publicações”. Ou seja, censura. A decisão liminar foi confirmada posteriormente pela juíza Leila Hassem da Ponte.

A estratégia de alegar uso indevido da marca foi também usada pela companhia aérea Latam (que ainda usava o logotipo da TAM, em 2015) para retirar do ar as críticas contidas na página “Bostam Airlines”, que satirizava a marca da empresa, alterando o seu logotipo e incluindo a linha-fina “respeito 0 ao cliente”. Na descrição da comunidade, lia-se: “para todas as pessoas que já tiveram ou têm algum problema com a Tam Airlines, e acham que esta bosta deveria acabar.” A juíza Vanessa Ribeiro Mateus determinou a suspensão da página, e foi além: acatou o pedido da companhia para repassar os dados privados do usuário à TAM e proibiu o Facebook de avisar o autor do post dessa violação à privacidade.

Até mesmo quem se orgulha de suas ações nas redes sociais também opta por usar a justiça para calar críticos. É o caso da empresa dona do Ponto Frio: a Via Varejo. Ela moveu ação contra André Luiz da Silva Prado e Google por uma piada no youtube com a marca Casas Bahia, também de sua propriedade. O vídeo citado no processo é uma paródia dublando um trecho do filme “Tropa de Elite”, em que as falas do personagem Capitão Nascimento são trocadas pelas de um fictício gerente das Casas Bahia, cobrando e repreendendo duramente vendedores que não empurrassem insistentemente a venda de garantia estendida ao comprador. No decorrer do processo, o Google acabou retirando o vídeo do ar.

Além das empresas mais conhecidas, há inúmeras ações judiciais movidas por negócios menores, calando nas redes sociais queixas de consumidores contra posto de gasolina, clínica de beleza, concessionária, etc.

Mirando o mensageiro

Os alvos das companhias não são apenas as redes sociais: sites dedicados a dar voz às reclamações de consumidores também estão acumulando processos do tipo. Uma busca rápida no site do Tribunal de Justiça de São Paulo, por exemplo, mostra ao menos 32 ações por danos morais, danos à imagem ou pedidos de tutela de urgência contra o serviço Reclame Aqui, que concentra queixas de consumidores e dá chance de resposta às empresas. Boa parte dessas ações requer a retirada de reclamações de consumidores das páginas do site. Um dos casos é o das Lojas Cem, que moveu um processo alegando que usuários do Reclame Aqui estariam postando inverdades para difamar a empresa. O pedido de exclusão das reclamações foi rejeitado e aguarda recurso.

Outra ação curiosa é a da loja Delta Móveis, que basicamente justificou o atendimento inadequado aos consumidores dizendo que passou por um alagamento seguido de um incêndio em suas instalações. Citando esses infortúnios, ela pediu que a justiça determinasse que os sites Reclame Aqui e Reclamão fossem proibidos de registrar queixas de consumidores contra a empresa, até que a companhia se reestabelecesse economicamente. Neste caso de forma explícita, a lógica por trás dessas ações coloca a liberdade de expressão numa escala de valores abaixo da saúde econômica das empresas.

Há uma série de outros processos contra o Reclame Aqui, indo de médicos pedindo para remover queixas de mau atendimento a construtoras que querem tornar impossível alguém reclamar sobre elas no site, passando por uma clínica de cirurgia plástica que tenta tirar a classificação de “não recomendado” aplicada pelo portal ao seu serviço. O que une os casos, novamente, é a premissa de que a liberdade de expressão se torna indesejável quando passa a atrapalhar negócios. Embora em praticamente todos os processos se faça referências positivas à liberdade de expressão e os autores tentem distanciar o pedido da censura, há sempre o acréscimo de um “porém”, dizendo que a livre expressão deve ser limitada em casos específicos – sempre aqueles relacionados aos pleitos das empresas, claro. Lidos em conjunto, as ações podem ser entendidas como uma lista de diferentes exceções sobre as quais os negócios não querem que a liberdade de expressão se aplique, se opondo ao entendimento do STF do conceito como um valor absoluto.

Mais liberdade? Menos liberdade?

Os casos acima são uma pequena amostra de como a justiça está sendo usada para cercear a expressão de consumidores insatisfeitos na internet. Por mais virulentos que sejam os posts, apagar as queixas e –pior ainda– impedir alguém previamente de criticar uma empresa, nos traz a lembrança de uma era de autoritarismo que poucos desejam.

O argumento de proteção intelectual para derrubar críticas da internet que se apropriam de marcas também deve ser visto com cuidado. Não parece desejável que a proteção à identidade visual da empresa se sobreponha ao direito de criticá-la, sob pena de começarmos a desestimular a publicação de paródias, sátiras e do humor como meio legítimo de crítica.

Como comparação, essa interpretação restritiva inviabilizaria ações como as do grupo anticonsumista Adbusters, que desde a década de 80 usa a identidade visual, logotipo e o campanhas de marketing de empresas para protestar contra elas de forma artística no Canadá e nos EUA. No limite, a forma como lidamos com esse tipo de processo no Brasil responderá se queremos impedir a circulação de críticas como as que são feitas pelo grupo há quase três décadas (veja abaixo algumas delas). A julgar pela pequena amostra de casos analisados aqui, a proibição está ganhando.

O símbolo da marca de cigarros Camel internado no hospital. http://www.adbusters.org/wp-content/uploads/2016/01/adbusters_JoeChemo_Billboard.jpg

 

A garrafa de Vodca Absolut, em campanha que subverte a associação de bebidas alcoólicas à virilidade. http://www.adbusters.org/wp-content/uploads/2016/02/adbusters_absolut_impotence.jpg

 

A marca McDonald’s associada nas peças da Adbuster’s aos problemas cardiovasculares de uma alimentação não saudável. http://www.adbusters.org/wp-content/uploads/2016/02/adbusters_mc_attack.jpg

 

 

Tiago Mali

Tiago Mali trabalha na Abraji onde é o coordenador dos cursos da entidade e do projeto Ctrl+X, que mapeia censura na internet. Formado pela PUC-SP, com pós-graduação na Universidade de Georgetown, foi repórter, editor e redator-chefe em uma série de veículos, como a Revista Época, a Revista Galileu e as páginas da ONU do PNUD no Brasil.