Ilustração: Caio Borges

As novas mídias têm impulsionado a insurgência que avança dentro do Partido Democrata nas primárias para as eleições ao Congresso e às Assembleias estaduais em novembro nos Estados Unidos. Os dois casos mais simbólicos são os de duas jovens mulheres não brancas que derrotaram parlamentares com muitos anos de mandato em distritos nas cidades de Nova York e Boston: Alexandria Ocasio Cortez, de ascendência porto-riquenha, e Ayanna Pressley, negra, respectivamente. O baixo custo de produção e disseminação de vídeos reduz a vantagem dos incumbentes, favorecidos pela maior facilidade em obter grandes doações. Semana passada o New York Times publicou interessante matéria a respeito.

Não se sabe ainda com certeza se a insurgência interna levará o Partido Democrata a retomar o controle da Câmara dos Deputados, hoje nas mãos do Partido Republicano, muito menos se uma eventual onda azul (a cor dos Democratas) este ano conduzirá o partido de volta à Casa Branca em novembro de 2020.

É certo, porém, que renovação política é maré montante nos Estados Unidos. Primeiro se deu no Partido Republicano, com a emergência do chamado Tea Party, nas eleições legislativas de 2012, e agora no Partido Democrata. Trata-se de movimentos em sentidos opostos: um  empurra os Republicanos para a defesa da América branca e conservadora; outro faz os Democratas refletirem cada vez mais a diversidade crescente da sociedade americana. Homens brancos compõem 85% da bancada atual dos Republicanos na Câmara. Entre os democratas esse percentual é de 44%. A tendência é que essa discrepância se acentue.

A insurgência do Tea Party contou com grandes doadores, notadamente os irmãos Kock, Charles e David, donos de um dos maiores grupos empresariais dos Estados Unidos. Já a dos Democratas é um fenômeno típico de grass-roots: pouca grana e muito ativismo social para mobilizar a participação e o voto de setores menos engajados na vida político-partidária (negros, mulheres, latinos, jovens).

Por que nada em intensidade comparável está ocorrendo no Brasil? A resposta não parece se encontrar na disponibilidade de novas tecnologias de produção e disseminação de informações e no acesso às mídias sociais. A diferença nesses aspectos não é grande o suficiente para explicar a enorme distância entre a renovação política observada aqui e lá. As tecnologias não operam no vácuo. Seus efeitos dependem do contexto cultural e institucional em que são empregadas.

Alexis de Tocqueville, autor de Democracia na América, publicado em 1835, está vivo nos Estados Unidos. A vitalidade e autonomia da sociedade civil americana, descritas e analisadas pelo pensador político francês, reagem com vigor à ameaça que Trump e seu governo representam para as liberdades e os direitos civis naquele país. Além disso, encontram um canal institucional para se expressar na vida partidária: o sistema de primárias para a escolha dos candidatos que disputarão cargos eletivos.

No Brasil, percebe-se desde 2013 um engajamento cívico cada vez maior em causas públicas, que passou a se traduzir a partir das eleições municipais de 2016 em mais participação de candidatos não vinculados à política tradicional nas eleições. No entanto, não apenas partimos de um patamar de organização da sociedade civil mais baixo do que o existente nos Estados Unidos, mas também o sistema político-partidário brasileiro tem características que bloqueiam e dispersam os efeitos dessa maior vontade de participação de novos atores na política.  O modelo de financiamento dos partidos, favorável às direções partidárias, as dificuldades em viabilizar campanhas competitivas na base de pequenas doações voluntárias de indivíduos, a divisão dos candidatos renovadores em diversos partidos, tudo isso, somado, enfraquece em muito a tradução do maior engajamento cívico-político em efetiva representação dentro dos partidos e do Legislativo.

Lições práticas a tirar: a tecnologia que reduz os custos de produção e disseminação da informação facilita a renovação política, mas está longe de assegurá-la. Ainda mais importante, em condições institucionais e culturais desfavoráveis, elas podem produzir mais efeitos negativos do que positivos para a democracia. Nessas condições, podem, diria mesmo que tendem, a favorecer mais a emergência de “outsiders” com fraco ou nenhum compromisso com as regras escritas e não escritas da democracia do que movimentos tipo grass-roots comprometidos com novas e melhores práticas políticas (transparência, prestação de contas, etc). Trump e Bolsonaro mostram isso.

Óbvio que não faz sentido algum dispensar as tecnologias que podem permitir a maior democratização dos partidos e da política. Mas é fundamental, repito, entender que elas não operam no vácuo. Dependem do contexto institucional e cultural em que são utilizadas. Este porém, não é imutável. E as novas tecnologias podem ser utilizadas para acelerar mudanças institucionais e culturais a favor da democratização dos partidos e da política, de baixo para cima. Razão pela qual, quaisquer que sejam os resultados das eleições de outubro, não devemos desanimar na luta por melhorar a qualidade da democracia brasileira. Quando mais não seja, para preservá-la.

Sergio Fausto

Sergio Fausto é Superintendente Executivo da Fundação Fernando Henrique Cardoso, co-diretor do Projeto Plataforma Democrática e co-editor da série de livros "O Estado da Democracia na América Latina". Faz parte do Grupo de Análise da Conjuntura Internacional da Universidade de São Paulo (Gacint-USP) e integra a equipe de colaboradores do Latin American Program do James Baker Institute for Public Policy, da Rice University. Fausto escreve regularmente para o jornal O Estado de S.Paulo e para o Infolatam – Información y Análisis de América Latina.