Memes em risco? A polêmica nova diretiva da União Europeia sobre direitos autorais
Ameaças à liberdade de expressão são geralmente associadas à censura, a governos autoritários, ao braço forte do Estado impedindo a livre circulação de ideias sobretudo por motivos políticos. Hoje, no entanto, ao menos no âmbito da União Europeia (UE), discutem-se os perigos potenciais de uma diretiva[1] moldada para a proteção de direitos autorais, aprovada[2] em 12 de setembro de 2018 pelo Parlamento Europeu por 438 votos a 226.
Seu grande ideólogo, o deputado alemão Axel Voss, em entrevista ao portal do próprio parlamento, sustenta que os criadores europeus produzem conteúdo que abastece portais como o YouTube e o Facebook, mas recebem uma parte muito pequena (ou mesmo nada) das receitas advindas dessa exposição – o que qualificaria sua posição como “miserável” [3].
Buscando alterar esse quadro, a nova norma modifica o sistema de responsabilidade das plataformas, que hoje é sintetizado na expressão “notice and take down”: elas têm o dever de remover um determinado conteúdo quando notificadas para tanto pelo interessado ou pelo Poder Judiciário, mas não o de fiscalizar previamente o conteúdo que é inserido na plataforma.
A nova diretiva altera drasticamente esse cenário no âmbito da União Europeia: pelo polêmico artigo 13, a responsabilidade das plataformas passa a ocorrer no momento do upload. A partir desse instante, elas podem ser responsabilizadas por violações a direitos autorais, caso o conteúdo inserido contenha, por exemplo, imagens não devidamente creditadas ou uma música cujos direitos autorais não tenham sido pagos pelo criador do vídeo ou da postagem[4]. A diretiva vai além, ao impor às plataformas, também, um dever de transparência – isto é, de explicar para os detentores de direitos autorais como funcionam as tecnologias que detectam violações, para que eles possam opinar se são adequadas ou não[5].
É nessa medida que um meme, por exemplo, que normalmente utiliza uma foto alheia com uma legenda, pode ser barrado pelo Facebook logo depois da postagem feita por um usuário – já que é muito raro que o fotógrafo detentor do direito autoral da imagem seja creditado e remunerado por ela.
Voss jura que memes e outras manifestações humorísticas não estão ameaçadas, porque elas estariam cobertas pela lei já existente como exceções à violação de direitos autorais[6], mas as empresas de tecnologia dizem o contrário[7].
Susan Wojcicki, diretora executiva do YouTube, que criou uma grande campanha contra a diretiva, afirma que os algoritmos do site já reconhecem uma série de violações a direitos autorais, bem como a uma série de termos de uso[8]. Contudo, para cumprimento da nova diretiva, os algoritmos teriam que ser programados para abordagens muito mais restritivas do conteúdo inserido pelos usuários[9].
O leitor que chegou até aqui pode estar se perguntando: o que isso tem a ver comigo, aqui no Brasil? Em primeiro lugar, isso significa que conteúdo produzido em outras partes do mundo que não respeite a diretiva será bloqueado nos 28 países membros da UE (o que significa uma audiência de milhões de pessoas a menos, justamente dentro de um mercado conhecido pelo alto poder aquisitivo e pelos altos índices de acesso à internet). Mas não só. As diretrizes da União Europeia costumam servir de inspiração para leis em outros países. Foi o caso, no Brasil, da recente Lei Geral de Proteção de Dados (Lei 13.709/2018), alicerçada integralmente no General Data Protection Regulation (GDPR), a norma europeia sobre o assunto. É possível que logo propostas similares cheguem por aqui com roupagem semelhante.
Por enquanto, porém, a polêmica está longe do fim dentro da própria União Europeia, tendo em vista que as discussões sobre a implementação da diretiva, que deveriam ter sido retomadas no último dia 21 de janeiro, foram paralisadas alguns dias depois e ainda não têm data para recomeço[10].
De todo modo, como observou a alemã Julia Reda, também membro do Parlamento Europeu, em artigo na revista Wired, a narrativa que está sendo vendida em torno dessa disputa é a de artistas europeus contra gigantes da internet, metonimizados no Google. Na prática, porém, segundo ela, os maiores vencedores são as grandes companhias de mídia. Não à toa, o meme do gato mal-humorado (“Grumpy Cat”), que ilustra o artigo, é ilustrativo de suas conclusões pessimistas a respeito: “Postar e compartilhar são as formas pelas quais participamos online. Uploads e links são o que fazem a internet ter mais significado para a sociedade do que TV a cabo. Os filtros de upload – as plataformas não vão ter escolha para limitar sua responsabilidade – vão provavelmente descambar para o ultrabloqueio, barrando atos de expressão legítima para evitar problemas jurídicos. No tribunal do filtro automático, seremos considerados culpados até prova em contrário”[11].
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[1] O texto integral da diretiva, em português, pode ser lido em: https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/HTML/?uri=CELEX:52016PC0593&from=EN. Acesso em 02.02.2019.
[2] Fonte: http://www.europarl.europa.eu/news/en/press-room/20180906IPR12103/parliament-adopts-its-position-on-digital-copyright-rules. Acesso em 31.01.2019.
[3] Disponível em: http://www.europarl.europa.eu/news/en/headlines/society/20180628STO06869/copyright-reform-we-want-to-protect-creatives-rights. Acesso em 31.01.2019. Voss reafirmou isso em entrevista coletiva realizada no dia da aprovação da diretiva, conforme pode ser conferido em: http://www.europarl.europa.eu/ep-live/en/other-events/video?event=20180912-1430-SPECIAL. Acesso em 09.02.2019. Na entrevista, aliás, também é dito que artistas e produtores de conteúdo nos Estados Unidos teriam ficado muito animados e satisfeitos com o surgimento dessa diretiva, e estariam estimulados a buscar condições semelhantes em seu país.
[4] A íntegra do artigo 13.1 é a seguinte: “Os prestadores de serviços da sociedade da informação que armazenam e facultam ao público acesso a grandes quantidades de obras ou outro material protegido carregados pelos seus utilizadores devem, em cooperação com os titulares de direitos, adotar medidas que assegurem o funcionamento dos acordos celebrados com os titulares de direitos relativos à utilização das suas obras ou outro material protegido ou que impeçam a colocação à disposição nos seus serviços de obras ou outro material protegido identificados pelos titulares de direitos através da cooperação com os prestadores de serviços. Essas medidas, tais como o uso de tecnologias efetivas de reconhecimento de conteúdos, devem ser adequadas e proporcionadas. Os prestadores de serviços devem facultar aos titulares de direitos informações adequadas sobre o funcionamento e a implantação das medidas, bem como, se for caso disso, sobre o reconhecimento e a utilização das obras e outro material protegido.”
[5] Trata-se do considerandum número 39: “A colaboração entre os prestadores de serviços da sociedade da informação que conservam e facultam ao público acesso a grandes quantidades de obras ou outro material protegido por direitos de autor carregados pelos utilizadores e os titulares de direitos é essencial para o funcionamento das tecnologias, tais como tecnologias de reconhecimento de conteúdos. Nesses casos, os titulares de direitos devem fornecer os dados necessários para os serviços identificarem os seus conteúdos e os serviços devem ser transparentes com os titulares de direitos no que diz respeito às tecnologias implantadas, a fim de permitir a avaliação da sua adequação. Os serviços devem, em especial, facultar aos titulares de direitos informações sobre o tipo de tecnologias utilizadas, a forma como são utilizadas e a sua taxa de sucesso no reconhecimento dos conteúdos dos titulares de direitos. Essas tecnologias devem também permitir que os titulares de direitos obtenham informações dos prestadores de serviços da sociedade da informação sobre a utilização dos conteúdos cobertos por um acordo”.
[6] Disponível em: http://www.europarl.europa.eu/news/en/headlines/society/20180628STO06869/copyright-reform-we-want-to-protect-creatives-rights. Acesso em 09.02.2019. No original: “No, they [memes and derivative fan works] are absolutely not at risk. They will still be covered by the copyright exception that already exists in national legislation. The user is not affected by this reform at all. Only the platforms are responsible”.
[7] O YouTube, por exemplo, criou a campanha #SaveYourInternet, com vídeos e textos com seu posicionamento oficial: https://www.youtube.com/saveyourinternet/. Acesso em 02.02.2019.
[8] Ver, por exemplo, o artigo de Susan Wojcicki, diretora executiva do YouTube, em artigo no Financial Times: https://www.ft.com/content/266e6c2a-e42e-11e8-a8a0-99b2e340ffeb.
[9] A terminologia usada pela diretiva, nas considerações que precedem o texto legal, é de que se cria “uma obrigação para determinados prestadores de serviços relativamente à aplicação de tecnologias adequadas”. Disponível em: https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/HTML/?uri=CELEX:52016PC0593&from=EN.
[10] Disponível em: https://www.euractiv.com/section/digital/news/copyright-directive-faces-further-setback-as-final-trilogue-cancelled/. Acesso em 09.02.2019.
[11] Tradução livre. No original: “Posting and sharing is how we participate online. Uploads and links are what makes the internet more meaningful for society than cable TV. The upload filters – that platforms will have no choice but to implement to limit their liability – will likely err on the side of over-blocking, withholding legitimate acts of expression to avoid legal trouble: in the court of the automated filter, we’ll be assumed guilty until proven innocent”. Disponível em: https://www.wired.co.uk/article/article-13-will-kill-the-internet-by-mistake. Acesso em 10.02.2019.