Imagem: Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil

Segundo o jornal O Globo, o deputado federal Kim Kataguiri (DEM-SP) destacou dois assessores para a função específica de criar memes, utilizando para isso parte da verba parlamentar a que tem direito. De acordo com a reportagem, o deputado revisa as criações da equipe e sugere pautas para o setor que foi apelidado de “memestério”[1].

Embora tenha sido alvo de críticas[2], em especial pelo reducionismo inerente a uma manifestação humorística com tão pouco espaço para conteúdo, é preciso reconhecer que a decisão de Kataguiri faz sentido. Antes de tudo, ela não deveria ser surpresa para quem acompanhou as últimas eleições no Brasil e mesmo em outros países do mundo, pois o meme se tornou a forma por excelência de fazer humor (inclusive político) em redes sociais e aplicativos de troca de mensagens. Mas, ainda antes disso, num mundo em que emoções se expressam por emojis, figurinhas e gifs, parece evidente que mecanismos gráficos e simplificados de divulgação como o meme têm maior potencial de difusão que os tradicionais releases de deputados e senadores.

O termo meme data da década de 1970. O biólogo americano Richard Dawkins partiu da palavra grega mimema (algo que é copiado), a abreviou e trocou uma letra para rimar com “gene”. Da mesma forma que o gene transmite informações sobre a constituição biológica de geração para geração, o meme transmite pequenos pedaços de cultura. Dawkins enquadra no conceito de meme tanto melodias e canções de ninar como conceitos abstratos e de maior relevância cultural como a crença em Deus e as religiões de um modo geral[3].

A palavra meme, desde então, foi alvo de um sem número de críticas e interpretações, mas fato é que, de alguns anos pra cá, passou a designar preferencialmente uma espécie de manifestação humorística que é construída com imagem e texto – ou, para ser mais exato, um texto em letras garrafais que se superpõe a uma foto ou gif.

A banalização do meme, e a acusação de que ele estaria substituindo a informação jornalística como fonte formadora de opinião, permite entrever um certo paradoxo: o meme ao mesmo tempo é que é valorizado por sua ampla repercussão e efetividade, ainda recebe a pecha de ser algo ligeiro e superficial.

É preciso reconhecer a limitação do meme, que não tem, de fato, estrutura para, sozinho, sustentar todo o debate político. Por outro lado, é certo que há memes de diferentes graus de complexidade e sofisticação, que podem conter, por exemplo, uma carga irônica maior e de percepção mais refinada, ou uma referência a algum elemento cult da história do cinema ou da literatura. De todo modo, Viktor Chagas, professor da Universidade Federal Fluminense e um dos criadores do Museu de Memes, sublinha o potencial do meme para ao menos iniciar o debate e levá-lo a uma parcela expressiva da população que, de outra maneira, permaneceria alijada do debate político[4].

De fato, parece repulsiva, do ponto de vista do direito constitucional, a hierarquização das formas de liberdade de manifestação do pensamento, tendo em vista que, pelo menos do ponto de vista brasileiro, essa liberdade é plena e tem como consequência lógica a pluralidade, de acordo com o que proclamam os artigos 5º, IX e 220 da Constituição Federal.

Essa lógica também se aplica ao humor – como bem lembrou a Ministra Nancy Andrighi, do Superior Tribunal de Justiça: “Não cabe ao STJ, portanto, dizer se o humor é ‘inteligente’ ou ‘popular’. Tal classificação é, de per si, odiosa, porquanto discrimina a atividade humorística não com base nela mesma, mas em função do público que a consome, levando a crer que todos os produtos culturais destinados à parcela menos culta da população são, necessariamente, pejorativos, vulgares, abjetos, se analisados por pessoas de formação intelectual ‘superior’”[5]. Consequentemente, o meme simplório deve receber em teoria a mesma proteção que o refinado, o meme com trocadilho inofensivo, a mesma proteção que aquele carregado de conotação política.

Em artigo publicado em 2017, o já citado Viktor Chagas lembrou que as eleições de 2014, o primeiro pleito nacional sob o domínio amplo e incontestável do WhatsApp e do Instagram (aplicativos ainda de pouca expressão em 2010), foram chamadas de “as eleições dos memes”[6], dada a proeminência deles na pauta dos assuntos de campanha, e considerando ainda sua difusão capilarizada por eleitores e a reverberação feita por veículos de comunicação tradicionais, que os compilavam para quem eventualmente tivesse perdido algum. Como Chagas propõe no artigo, os memes funcionaram em 2014 como termômetros da disputa, capazes de identificar pontos altos e baixos dos candidatos, e foram utilizados tanto como peças publicitárias pela militância como charges virtuais pelos adversários.

Não seria demais afirmar que, se em 2018, isso se elevou à décima potência, em 2022 esse protagonismo tende a ser ainda maior. Não será surpresa, por isso, que muito em breve outros ocupantes de cargos eletivos se apressem em criar também os seus “memestérios”.

[1] Disponível em: https://blogs.oglobo.globo.com/bela-megale/post/mbl-monta-reparticao-de-memes-no-congresso.html. Acesso em 29.03.2019.

[2] O debate suscitado pela notícia, bem como alguns dos memes criados pelo “memestério” do gabinete, podem ser vistos em reportagem da GloboNews disponível em: http://g1.globo.com/globo-news/estudio-i/videos/t/todos-os-videos/v/deputado-federal-kim-kataguiri-contrata-secretarios-para-criar-memes/7490572/. Acesso em 07.04.2019.

[3] SHIFMAN, Limor. Memes in digital culture. Cambridge: MIT Press, 2014. p. 9.

[4] Avedaño, Tom. Fora meme? Como o Governo Temer virou inimigo da indústria das piadas na Internet. El País Brasil, 27.05.2017. Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2017/05/27/ciencia/1495899503_382776.html. Acesso em 04.10.2017.

[5] Superior Tribunal de Justiça. 3ª Turma. Recurso especial 736.015/RJ. Rel. Min. Nancy Andrighi, julg. 16 06.2005. Fiz uma análise mais aprofundada desta decisão em um artigo publicado na Revista dos Tribunais, v. 939, p. 19-37, jan.2014.

[6] CHAGAS, Viktor; FREIRE, Fernanda Alcântara; RIOS, Daniel; MAGALHÃES, Dandara. A política dos memes e os memes da política: proposta metodológica de análise de conteúdo de memes dos debates eleitorais de 2014. Intexto, Porto Alegre, UFRGS, n. 38, p. 174, jan./abr. 2017. DOI: http://dx.doi.org/10.19132/1807-8583201738.173-196.

João Paulo Capelotti

Doutor e mestre em direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Membro associado da International Society for Humor Studies (ISHS) e da International Society for Luso-Hispanic Humor Studies (ISLHHS). Advogado.