Ilustração: Caio Borges

Assistimos recentemente a uma grande polêmica acerca da liberdade acadêmica envolvendo o ministro da Educação, Mendonça Filho (DEM), que criticou a oferta de uma disciplina intitulada “O golpe de 2016 e o futuro da democracia no Brasil” na UnB. Sem entrar no mérito, qualidade ou conveniência do curso, o fato é que a decisão desastrada do ministro de pedir à AGU (Advocacia-Geral da União), ao TCU (Tribunal de Contas), à CGU (Controladoria Geral) e ao MPF (Ministério Público Federal) a “apuração de improbidade administrativa por parte dos responsáveis pela criação da disciplina”, desencadeou não apenas uma justificável reação crítica a sua atuação por significar uma potencial violação à liberdade acadêmica e de expressão, bem como provocou o surgimento de outros cursos similares em outras instituições em todo o Brasil.

Se alguma lição se pode aprender do episódio, foi a de quanto é delicado o tema da liberdade de expressão, em particular em seu capítulo da liberdade de expressão acadêmica no ensino superior. Note-se que a atitude do ministro sequer foi de proibição ou censura direta, mas o mero pedido de investigação pelos órgãos encarregados da persecução penal, como o Ministério Público. Este fato foi corretamente interpretado como uma forma de “intimidação”, ou silenciamento contrário ao princípio da liberdade acadêmica que, no contexto universitário, se supõe deve ser especialmente amplo, visto que os agentes envolvidos são maiores, capazes e autônomos.

Recentemente, vimos ocorrer na Universidade Federal do Pará um outro episódio semelhante naquilo que envolve a liberdade acadêmica, mas ainda mais grave no que tange à medida atentatória a liberdade de expressão defendida por seus partidários.

A discente do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFPA, Dienny Riker, orientada pelo Prof. Dr. Victor Sales Pinheiro, preparou uma dissertação de mestrado intitulada: “Casamento: Sua natureza conjugal e relevância para o bem comum”. Nela a candidata debate as ideias do casamento à luz do pensamento do pensamento do filósofo australiano, professor Emérito de Oxford (UK), John Finnis. Sejamos diretos, ela critica a ideia do casamento homoafetivo à luz das ideias de John Finnis.

A despeito das incontroversas credenciais intelectuais de Finnis como um dos mais importantes e influentes filósofos jusnaturalistas da atualidade, muitas de suas ideias substantivas sobre a justiça e moral são bastante controversas. Isto faz dele um interlocutor central e poderoso para qualquer discussão séria sobre os inúmeros temas sobre os quais ele escreveu, como o aborto, eutanásia, casamento, além de outros temas de filosofia moral e do direito. É justamente porque ele não é um autor panfletário, superficial ou mero “militante conservador” que as suas ideias têm merecido enorme respeito não apenas entre aqueles que concordam com elas, mas também muitos de seus mais duros inimigos teóricos, como os liberais progressistas Joseph Raz, Ronald Dworkin, Jeremy Waldron, utilitaristas como Peter Singer, ou pensadores de esquerda ligados aos Critical Legal Studies como Mark Tushnet e tantos outros.

A publicação antecipada do conteúdo da tese provocou, sem surpresas, a reação política do movimento LGBT em redes sociais e também de associações estudantis. Numa nota pública, o DCE-UFPA repudiou com veemência o conteúdo da tese por entendê-lo preconceituoso e sem os devidos méritos acadêmicos. Afirmou: “A dissertação retoma São Tomás de Aquino para sua fundamentação e análise da realidade. Estamos falando do uso indiscriminado e descontextualizado da produção teológica escrita no século XIII visando a legitimação acadêmica do casamento heterossexual e a defesa de um único modelo de família. O resumo desta suposta produção acadêmica nos lembra os espaços mais contaminados por ódio, preconceito e senso comum da internet e da sociedade.” Transcrevo a crítica, não para endossa-la ou critica-la, mas para destacar que todos terão direito de criticar as ideias contidas na referida tese. A liberdade de expressão visa garantir que não apenas alguns possam defender determinadas ideias, mas também que aqueles que as considerem erradas, possam critica-las com a mesma amplitude.

Ocorre, contudo, que a mesma nota afirma e pede algo mais. E aqui reside uma questão mais distinta sobre a qual importa refletir. A nota pede que o programa de pós-graduação não autorize a defesa da tese, explicitamente, censurando-a. Ela afirma que “a dissertação atenta contra os princípios norteadores do Programa, ao violar direitos humanos, pois se defende: o zelo e reconhecimento pelo ser humano em todas as suas identidades, ao mesmo tempo princípio e finalidade da UFPA (art. 2º, VIII e art. 3º, I a III, RIUFPA).” Afirmando isto, a nota conclui com uma referência explicita a inadequação do argumento da liberdade de expressão para sustentar que a tese seja apresentada e defendida perante uma banca no programa de pós graduação em Direitos Humanos: “Neste sentido, o DCE-UFPA repudia a defesa de dissertação que, endossada por discursos oportunistas sobre ‘liberdade de ex(o)pressão’, visa tolher a liberdade de pessoas se amarem e constituírem famílias e vínculos afetivos entre LGBTs. Mesmo que bradem conservadorismo, lésbicas, gays, bissexuais, pessoas trans e travestis fazem parte de famílias, tecem relações afetivas e exercem seu direito de ser, amar e cuidar dos seus familiares, evidenciando a distância entre a realidade e esta dissertação, a qual teria mais sentido se fosse defendida no século XIII.

A questão posta, portanto, é a seguinte: pode ou deve um Programa em Direitos Humanos permitir a defesa de uma tese que questiona o direito ao casamento homoafetivo? A resposta dada pelo DCE é claramente negativa. A UFPA ainda não se manifestou, e sua reação será importante, pois compete a ela e não aos movimentos estudantis ou movimentos sociais garantir a liberdade de expressão acadêmica. Eu entendo que sim. O programa tem o dever de garantir a defesa da tese e ganhará muito com isto.

Em primeiro lugar, é importante notar que um programa de pós-graduação, ainda que em Direitos Humanos, é um programa acadêmico e não um programa de formação politica ou de militância. Isto implica o seu compromisso com o debate radicalmente amplo e aberto de ideias, característico do ethos acadêmico.

Em segundo lugar, não se pode esquecer que o próprio questionamento do conteúdo e limites dos direitos humanos constitui-se não numa premissa dogmática da investigação acadêmica dos direitos humanos, mas num de seus objetos. Daí o motivo pelo qual argumentos céticos, relativistas ou até mesmo ataques às defesas tradicionais dos direitos humanos não apenas são pertinentes para um programa acadêmico sobre o tema, como são necessários. Em outras palavras, um ambiente acadêmico requer e pressupõe o desafio, dentro de padrões de qualidade e proficiência acadêmicos, dos argumentos eventualmente dominantes dentro de determinando campo de saber.

Em terceiro lugar, é importante lembrar que a própria liberdade de expressão é um dos mais importantes direitos humanos. Seria injustificável, do ponto de vista acadêmico, simplesmente sacrificá-la em proveito de um suposto objetivo politico que poderia se ver ameaçado pela discussão de ideias. As ideias ameaçam. A academia é um dos espaços mais sagrados e fortificados para a sua discussão irrestrita e livre.

Em quarto lugar, nunca é demais lembra que o pluralismo é um valor importante para a qualidade e prestígio da universidade. Certamente um ambiente de crítica e desafio é um importante estímulo ao aperfeiçoamento de ideias e argumentos. Um ambiente onde todos pensam da mesma forma poderá ser útil para a organização de um movimento político, mas não para a promoção da reflexão e do debate, pois este requer diversidade real de pensamento. É tentador lembrar que defender ideias contra a corrente requer ousadia e coragem. Um bom programa acadêmico deve sempre estimular que tais valores floresçam de modo a enriquecer a reflexão de todos.

Em síntese, sacrificar a liberdade acadêmica em beneficio de objetivos político militantes, por mais louváveis que estes possam parecer aos seus defensores, é um erro acadêmico. Nada impede que no campo da militância o repúdio a ideias continue a ser feito através de banners, faixas e gritos de ordem. Mas no campo da academia é fundamental que as teses ainda sejam julgadas por bancas formadas por acadêmicos, por critérios acadêmicos, dentro de um ethos acadêmico. Talvez os militantes mais empedernidos tenham dificuldades para compreender e aceitar isto. Certamente as agências de fomento e de apoio a pesquisas acadêmicas sempre estarão mais abertas a compreender tais argumentos quando expostos com clareza e sinceridade.

Ronaldo Porto Macedo Junior

Doutor em Direito (1997), mestre em Filosofia (1993), graduado em Direito (1985) e em Ciências Sociais (1987), todos pela Universidade de São Paulo. Atualmente é Procurador de Justiça do Ministério Público do Estado de São Paulo, Professor Titular do Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito da Faculdade de Direito da USP, Professor de Filosofia Política, Ética e Teoria do Direito na DIREITO GV e Professor do LL.M Legal Theory Program na Goethe University em Frankfurt am Main. Foi Visiting Scholar junto à Harvard Law School (1994-1996) e Visiting Researcher na Yale Law School (2002). Fez pós-doutoramento no King’s College of London (2008-2009).