Ilustração: Caio Borges

Os políticos brasileiros parecem cada vez mais interessados na questão da liberdade de imprensa. E isso não é motivo para comemoração. Relatório recente do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) mostra que, de cerca de 13 mil processos judiciais encontrados sobre esse tema desde 2015, 37% estão na esfera eleitoral (onde predominam ações de políticos e partidos). Para se ter uma base de comparação, a Justiça Eleitoral responde por apenas 3% dos processos de todo o Judiciário.

Essa super-representação da Justiça Eleitoral nas questões da imprensa está ligada a casos sobre danos morais, cerca de metade dos analisados pelo estudo. Ou seja: o interesse dos políticos nos processos parece ser com um eventual “excesso de liberdade de imprensa”. O achado vai na linha do que já mostramos no projeto Ctrl+X da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji). Embora nossa metodologia seja diferente daquela do projeto Selo Justiça em Números (cujos dados foram usados no relatório do CNJ), mostramos que dois em cada três processos tentando retirar algum tipo de conteúdo da internet têm um político/partido como autor.

Não é de surpreender, portanto, que essa vontade de esconder reportagens e posts por via judicial se manifeste também na atividade legislativa. Foi assim que no fim de 2017 a Câmara aprovou uma emenda que determinava a remoção de conteúdos da web em 24 horas após uma denúncia, sem a necessidade de análise pelo Judiciário. A medida, que instituiria censura em massa no país, foi vetada após intensa pressão da sociedade. A justificativa para aprovação desse texto, porém, continha o embrião de um dos maiores riscos atuais para a liberdade de imprensa no Brasil: a menção às “fake news” para impor medidas de censura.

Justificativa fake

A referência a textos que tentam desinformar para justificar a criação de mecanismos de censura repetiu-se outras vezes neste ano. O PL 9647/2018, apresentado em fevereiro, tentava novamente fazer com que fosse necessária apenas uma notificação para obrigar provedores a retirar conteúdo do ar.

Um mês depois, tentativa semelhante de criminalizar e destruir garantias de liberdade de expressão do Marco Civil apareceu num anteprojeto na Comissão de Comunicação Social do Senado – rejeitado novamente após mobilização social. Outra vez, as “notícias falsas” (uma contradição em termos já que se é falso não é notícia) justificariam as medidas mais restritivas.

Se esse tipo de argumento ainda não colou na Câmara, tem encontrado terreno fértil numa cúpula do Judiciário permeável a pressões políticas. O presidente do TSE, ministro Luiz Fux, chegou a incluir Agência Brasiliera de Inteligência, Exército e Polícia na discussão sobre as “fake news”, a sugerir que o tribunal exerça poder de polícia contra notícias falsas e a repetir algumas vezes, sem maior detalhamento, que esse tipo de conteúdo poderia resultar em anulação das eleições. De que jeito seria feita essa classificação e quem decidiria o que é ou não uma falsidade, questões cruciais para a liberdade de imprensa, parecem não ter merecido uma reflexão mais profunda do ministro.

Justiça desinformada

Essa falta de reflexão apareceu na recente decisão que determinou a retirada de conteúdo considerado “fake news” contra a candidata Marina Silva. A ex-senadora pediu a retirada de cinco textos postados pelo perfil do Facebook “Partido Anti-PT, cujos administradores se mantêm no anonimato e têm mais de 1,7 milhão de seguidores.

Os posts retirados se baseiam em duas informações que foram divulgadas pela grande imprensa: a de que o empreiteiro Léo Pinheiro disse que a OAS fez contribuições para a campanha de 2010 de Marina Silva usando caixa dois (o que ela sempre negou) e a de que Marina recebeu doações de R$ 1,2 milhão da Odebrecht (as contribuições existiram, foram registradas e reconhecidas pela candidata como legais). Em seus títulos, as publicações no Facebook distorciam os fatos, chamando as doações à campanha de propina e dizendo que Marina havia sido delatada.

Para além de a decisão ter sido justa ou não, o problema é que ao mandar retirar os posts o ministro Sérgio Banhos evitou – aparentemente porque não há a clareza sobre como o judiciário pode/deve fazer isso – analisar de perto o texto das notícias. Seu primeiro argumento para decidir pela retirada dos links é que foram publicados de maneira anônima, o que estaria proibido na lei (vamos deixar a discussão sobre esse tema espinhoso para um outro artigo). O segundo ponto, o de que existem indícios que configuram “fake news”, é de uma fragilidade extremamente perigosa para a liberdade de expressão. A decisão afirma que:

1 – “Ainda que assim não fosse [que não tivesse anonimato], observo que as informações não têm comprovação e se limitam a afirmar fatos desprovidos de fonte ou referência, com o único objetivo de criar comoção a respeito da pessoa da pré­candidata”.

Como lembra Ricardo Balthazar neste artigo, exatamente o mesmo argumento poderia ser usado para retirar da Folha de S. Paulo esta notícia que diz que “Promotoria apura suposto caixa 2 de concessionária para campanha de Alckmin”. As informações foram apuradas pelo repórter preservando a fonte, sem maior comprovação. Se formos usar o critério de comprovação e identificação da fonte para retirar matérias do ar, boa parte do jornalismo de bastidores da política sairia do noticiário. É razoável que seja o judiciário a determinar que se pare de fazer esse tipo de jornalismo?

Sobre dizer que foi “com o único o objetivo de criar comoção a respeito da pessoa”, essa é a mesma alegação de quase todos os candidatos que pedem para retirar uma notícia do ar. Como ainda não conseguimos ler os pensamentos dos seres humanos, é um argumento impossível de provar ou refutar.

2 – “Aliás, a conformação estilística das postagens também pode apontar, indiciariamente, a existência de conteúdo falso. Ainda que não se possa afirmar que todas as fake news sejam redigidas da mesma forma, pesquisas recentes já indicam a existência de um padrão relativamente comum nesse tipo de publicação, identificável até mesmo pela inteligência artificial. Indicam­se, como traços comuns: a manchete sensacionalista, a prevalência da primeira pessoa no texto, erros de gramática e coesão e o uso de palavras de julgamento e extremismo (https://medium.com/data-science-brigade/a-ci%C3%AAncia-da-detec%C3%A7%C3%A3o-de-fake-news-d4faef2281aa)”

Se esses “traços comuns” citados na decisão forem usados como indicativo de uma “notícia falsa”, uma parte significativa dos textos compartilhados na internet entraria na categoria passível de ser apagada pelos juízes. É isso o que fará o judiciário? Atuará como um grande irmão bloqueando uma quantidade imensa de conteúdo?

Ao entrar no link que o juiz indica para basear a sua decisão encontra-se, ao fim do texto, a seguinte frase: “Apesar de todas as pesquisas estarem focadas no idioma e contexto norte americano (no máximo alguns experimentos com o britânico), pode ser que as mesmas conclusões se apliquem no Brasil. Ou não, não temos como saber sem experimentar.” São esses os indícios (que o próprio autor do texto relativiza por não termos experimentos no Brasil do tipo) que o juiz acha suficientes para sustentar uma decisão de apagar conteúdo?

Como se vê, a decisão que está sendo considerada a pedra inaugural da análise de processos sobre “fake news” nestas eleições não é fundamentada com argumentos que possam ser aplicados para identificar outros conteúdos que sejam “fake”. O problema não é retirar do ar um conteúdo que tentava, aos olhos deste escriba, distorcer denúncias levantadas por jornalistas sérios sobre uma candidata. O problema é que, ao não conseguir elencar um princípio justo por trás dessa decisão, o judiciário abre precedentes para que outros conteúdos verdadeiros sejam tirados do ar, baseados apenas na subjetividade e nos fracos argumentos do julgador.

Uma das máximas do jornalismo diz que “notícia é algo que alguém, em algum lugar, não quer que seja publicado. Todo o resto é propaganda”. É claro que a afirmação tem seus defeitos: também há mentiras que pessoas não querem que sejam publicadas. Existem milhares de processos onde políticos tentam reverter publicações – e isso acontecerá com cada vez mais frequência conforme as eleições se aproximam. Ao pretender desempenhar um papel que não é seu – o de decidir se um conteúdo é verdadeiro –, o judiciário pode mirar na mentira e acertar a verdade, retirando do debate público muito mais do que as “notícias falsas” e fulminando com balas perdidas o que nos resta de liberdade de imprensa e democracia.