O Poder Judiciário faz censura?
Paulatinamente, o Poder Judiciário assumiu um papel de destaque na vida nacional pós-1988. Esse fenômeno está ligado à importância que foi dada sob a nova Constituição pelos estudiosos do Direito à questão da eficácia. Em um país com um histórico de constituições nominais – “para inglês ver” – a nova Constituição foi, aos poucos, infiltrando-se em todo o ordenamento, sendo citada como a solução para quase todas as controvérsias jurídicas.
Esse processo tem aspectos positivos e aspectos negativos. Por um lado, demonstra a consolidação da ideia de que os indivíduos e grupos são titulares de direitos e, portanto, pleiteiam judicialmente diante de suas violações. Por outro, traz o risco de consagrar um superpoder, que faz o que bem entende, agindo como se estivesse autorizado por preceitos genéricos e principiológicos, violando, muitas vezes, direitos em nome da garantia de outros direitos com, o que é pior, a posição da autoridade que dá a última palavra na interpretação.
Um tema que me preocupa demasiadamente é o crescimento de decisões que proíbem publicações ou impedem a circulação de informações. Não é, hoje em dia, incomum surgirem decisões judiciais que impedem a publicação de conteúdos específicos. Tais decisões interditam debates e restringem o acesso do público a informações, incidindo, negativamente, em um espaço que é fundamental para a democracia.
Não são poucos os que defendem tal prática, geralmente com um discurso de defesa de algum outro direito. Tentam passar a imagem de que controle judicial não se confunde com censura e que o Judiciário nada mais faz que proteger direitos.
A postura de quem defende a existência desse poder de impedir a publicação ou a circulação de informações tem por pressuposto uma visão paternalista da relação entre indivíduos e a informação à qual têm acesso. Desconsideram os defensores do controle judicial do conteúdo da comunicação ou da informação a capacidade que as pessoas têm de avaliar o leem, ouvem ou assistem.
Esse controle judicial deve ser sim interpretado como censura quando resulta em uma vedação de circulação de informação. A censura não é definida em razão do tipo de sujeito que a pratica. Não importa se o agente que proíbe um discurso é do Executivo, do Legislativo ou do Judiciário. Proibida a fala, caracterizada estará a censura.
A entidade Repórteres Sem Fronteiras organiza um ranking de países segundo o respeito à liberdade de expressão. O Brasil está, em 2017, na incômoda posição n. 103, atrás de países em guerra, como a Ucrânia. A atuação do Poder Judiciário contribui fortemente para a classificação.
Nos tribunais superiores, no entanto, há algo a ser comemorado quando aparecem decisões consagrando a liberdade de expressão como um bem maior, como aconteceu no caso das biografias não autorizadas, decidido pelo Supremo Tribunal Federal, e no caso do site Falha de São Paulo, julgado pelo Superior Tribunal de Justiça.
No primeiro caso, o STF superou uma fase difícil para autores de biografias quando, em diversas decisões judiciais de primeira e segunda instância, publicações de livros foram proibidas sob a alegação de que a biografia apenas poderia ser escrita após autorização do biografado ou de seus sucessores. O Supremo entendeu que tal prática era incompatível com a liberdade de expressão constitucionalmente consagrada.
O segundo caso tratou da tentativa do jornal Folha de S. Paulo de proibir um site cômico, que fazia uma sátira com o nome e com características gráficas do jornal. Com argumentos em torno de direitos sobre a marca e sobre a possibilidade de leitores confundirem os sites, o jornal buscou e, inicialmente, conseguiu no Judiciário tirar o site satírico do ar. A decisão proibitiva foi confirmada pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, mas foi revisada pelo STJ, que entendeu inexistirem as violações alegadas e consagrou a liberdade de expressão dos responsáveis pelo site de humor.
Estamos, no entanto, ainda longe de uma situação confortável. O tema ainda vai demorar a conhecer uma interpretação uniforme nos tribunais. Nossa tradição autoritária ainda influencia fortemente o debate. Diante de discursos inconvenientes ou agressivos, normalmente reagimos pedindo que sejam suprimidos. Ao reagir às ações, juízes transformam essa revolta em censura.