Ilustração: Bia Leme

Em coluna anterior, comentei a decisão do Supremo Tribunal Federal que declarou inconstitucionais partes de artigos da Lei de Eleições e que, na prática, liberou o uso de humor durante campanhas eleitorais. Com o entendimento do STF firmado, é interessante verificar como foi o efetivo comportamento da Justiça Eleitoral durante o turbulento pleito deste ano.

De início, talvez o que mais chame a atenção é que as situações de maior repercussão envolvendo o humor não foram discutidas em processos judiciais.

Por exemplo: os vídeos do comediante Marcelo Adnet imitando os candidatos à presidência e ao governo de alguns estados, somados, contam com quase 25 milhões de visualizações[1]. Embora Adnet relate ter recebido ameaças[2] (o que é temerário) não foram ajuizadas representações eleitorais por conta dos vídeos, que foram produzidos pelo jornal O Globo.

Outro exemplo de grande repercussão nas redes sociais foram os diversos perfis que, utilizando bonecas Barbie e frases atribuídas às camadas mais altas da sociedade, configuravam crítica irônica aos projetos dos candidatos mais à direita[3].

É certo que ambas essas manifestações humorísticas receberam reações positivas e negativas, mas, a princípio, essa absorção e digestão dos conflitos de liberdade de expressão pela própria sociedade é uma boa notícia. Aparentemente, denota a compreensão, pelo corpo social, de que a sátira, a ironia, a paródia e outras formas de manifestação do pensamento são inerentes ao debate político e podem ser criticadas, mas, em regra, não devem ser simplesmente removidas ou proibidas.

Não obstante, em dois casos pontuais, partidos e candidatos optaram por levar reclamações ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE) contra manifestações que consideraram abusivas.

O candidato à presidência do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), Guilherme Boulos, insurgiu-se contra vídeos postados pelo canal Hipócritas no YouTube.

O primeiro deles[4], no formato de telejornal, traz dois atores comentando a agenda política dos postulantes à presidência da República. A certa altura do vídeo, fala-se da invasão do estúdio de uma emissora de televisão por um “terrorista perigoso”. No esquete, o apresentador afirma que a emissora não pôde fazer nada a respeito porque o invasor era justamente um dos participantes do debate. Nesse momento, é exibida uma fotografia de Boulos, embora seu nome não seja mencionado.

O segundo[5] é a fictícia propaganda eleitoral do candidato a deputado estadual “Catarro de Deus”, que pede licença para entrar no lar do telespectador – algo que seria, segundo o vídeo, uma prática efetiva de Boulos e do PSOL.

Na representação, argumenta-se que os esquetes trariam conteúdo ofensivo ao imputar a prática de crimes ao candidato[6]. O pedido liminar de remoção do conteúdo foi negado pelo relator da representação, ministro Carlos Horbach, “por vislumbrar que os humoristas do canal representado pretenderam expressar crítica às ações do candidato representante e que o debate eleitoral suscitado por meio da arte, do humor ou da sátira deve ser especialmente protegido”[7].

Ante o claro alinhamento do relator à decisão do STF comentada na coluna anterior, o candidato interpôs recurso, alegando que os vídeos do canal se distanciariam da proteção legal por representar perseguição a Boulos, por demonstrar preferência inequívoca a outro candidato (Jair Bolsonaro) e por conter informação sabidamente inverídica e ofensiva.

O ministro Horbach e o plenário da corte, porém, continuaram entendendo que os vídeos eram lícitos. Segundo ele, os dizeres dos atores que interpretam o jornalista e o candidato a deputado são “manifestamente farsescos” – ou seja, seriam facilmente reconhecíveis pelo eleitor como conteúdo humorístico, não sério, utilizando o que teóricos do humor chamam de “competência humorística” (saber distinguir um discurso humorístico de outro não humorístico).

Uma das pistas para isso é o exagero. Da mesma forma que uma caricatura pode trazer um nariz ou uma orelha grande, a sátira política pode recorrer à exasperação de uma ideia efetivamente defendida pelo candidato. No caso, Boulos tem trajetória à frente do Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST), para o qual a invasão de imóveis desocupados funciona como instrumento de pressão legítimo, mas que é encarado como atitude criminosa por outros setores da sociedade.

O argumento de perseguição a Boulos também foi afastado, na medida em que o vídeo do telejornal continha alusões a outros concorrentes, como Ciro Gomes, Marina Silva e Cabo Daciolo. Quanto ao argumento de preferência a Bolsonaro, foi lembrado que a internet não está sujeita às regras de equalização temporal impostas pela legislação ao rádio e à televisão.

A segunda representação eleitoral[8] foi ajuizada por Jair Bolsonaro, do Partido Social Liberal (PSL), contra programa de seu adversário Geraldo Alckmin, do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB). Segundo a representação, o vídeo “degrada e ridiculariza o candidato, fazendo montagem com sua imagem utilizando partes dos rostos dos candidatos Marina Silva, Ciro Gomes, Fernando Haddad e ex-Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, ‘criando um verdadeiro ‘Frankenstein’’”.

Para o TSE, porém, “Não se constata na inserção impugnada irregularidade capaz de difamar o representante”, na medida em que o objetivo da propaganda seria demonstrar que “ao escolhê-lo no primeiro turno das eleições de 2018, o eleitor, em verdade, estaria dando chance ao retorno de um governo comandado pelo Partido dos Trabalhadores”. A propaganda tinha como pano de fundo pesquisas de intenção de voto, divulgadas no final de setembro, que apontavam vitória do PT no segundo turno sobre Bolsonaro[9].

Fica claro, da análise desses dois precedentes, que o TSE continuou reconhecendo o papel do humor no debate público, em especial durante o período eleitoral. A conferir se a sociedade e o Judiciário continuarão com a mesma disposição daqui para a frente.

[1] Os doze vídeos estão reunidos numa playlist disponível em: https://www.youtube.com/playlist?list=PLEWpSGR4paOo3JiojHxGupSO6Ma6U1iez. Acesso em 31.10.2018. O vídeo mais assistido é o do candidato à presidência eleito, Jair Bolsonaro, com mais de 4 milhões de visualizações. É também o que conta com maior número de reações, positivas e negativas: 191 mil curtidas e 377 mil descurtidas.

[2] Conforme afirmado em entrevista ao jornalista Pedro Bial no programa Conversa com Bial. A síntese das declarações pode ser encontrada em: https://gshow.globo.com/programas/conversa-com-bial/noticia/marcelo-adnet-depois-das-ameacas-que-sofreu-hoje-o-comediante-trabalha-com-medo.ghtml. Acesso em 02.11.2018. A íntegra do programa pode ser encontrada em: https://www.youtube.com/watch?v=Cnbf2Y6_UMU. Acesso em 02.11.2018.

[3] O mais famoso deles é a Barbie Fascista (disponível em: https://twitter.com/barbiefascista_. Acesso em 02.11.2018). O Congresso em Foco explica brevemente a história da personagem e traz alguns dos memes mais conhecidos no seguinte link: https://congressoemfoco.uol.com.br/eleicoes/barbie-fascista-faz-sucesso-nas-redes-com-frases-preconceituosas-usadas-na-eleicao/. Acesso em 02.11.2018.

[4] É o vídeo “Fake news – Ep. 05”, disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=cIk8WGjJWTo. Acesso em 02.11.2018.

[5] Trata-se do vídeo intitulado “Dep. Catarro do PSOL”, disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=7T2Eoj2duRs. Acesso em 02.11.2018.

[6] O vídeo com a íntegra do julgamento no TSE está disponível no próprio canal, no link: https://youtu.be/9YUelloEt6A. Acesso em 02.11.2018. O advogado do representante utiliza um argumento ad terrorem, no sentido de que se o candidato é alvo de imputações desse tipo, qualquer um, inclusive os membros do tribunal, poderiam ser.

[7] TSE. Representação 0600969-30.2018.6.00.0000. Rel. Min. Carlos Horbach, julg. 05.09.2018.

[8] TSE. Representação 0601493-27.2018.6.00.0000. Rel. Min. Sérgio Banhos, julg. 29.09.2018.

[9] Veja-se, por exemplo, reportagem da revista Veja: https://veja.abril.com.br/politica/bolsonaro-perde-de-haddad-por-45-a-39-no-2o-turno-diz-datafolha/. Acesso em: 02.11.2018.