Ilustração: Caio Borges

Em meio ao mar de polêmicas e discussões acaloradas em que o Supremo Tribunal Federal (STF) está atualmente envolvido, ao menos uma decisão recente da corte parece ter recebido acolhida unanimemente positiva: o acórdão que julgou a ação direta de inconstitucionalidade (ADI) 4.451/DF, sintetizado pela imprensa como a decisão que autorizou, em definitivo, a produção de conteúdo humorístico no período eleitoral.

Tecnicamente falando, a ação questionava dois incisos do artigo 45 da Lei 9.504/1997, que regula as eleições. Interessa-nos aqui o inciso II, segundo o qual era vedado às emissoras de rádio e televisão, durante o período da campanha, em sua programação normal e noticiário, utilizar “trucagem, montagem ou outro recurso de áudio ou vídeo que, de qualquer forma, degradem ou ridicularizem candidato, partido ou coligação, ou produzir ou veicular programa com esse efeito”.

O artigo questionado pela ação já estava com a aplicabilidade suspensa desde 2010, por decisão liminar do então relator, Min. Carlos Ayres Britto (que, alguns meses antes, havia se notabilizado na relatoria da ação que declarou a antiga Lei de Imprensa incompatível com a Constituição).

A decisão foi posteriormente referendada pela maioria do colegiado do STF. Os votos vencidos na ocasião (os ministros Dias Toffoli, Ricardo Lewandowski e Marco Aurélio) ressaltaram que não faria sentido suspender em caráter de urgência um artigo que acompanhava a lei desde sua promulgação, em 1997[1].

De fato: só se passou a prestar atenção nessa disposição restritiva quando, em 2009, o Congresso Nacional aprovou a Lei n. 12.034, que acrescentou os parágrafos 4º e 5º ao artigo 45 da Lei das Eleições, definindo o que se entendia por “trucagem” e “montagem” para efeitos de aplicação do inciso II[2].

No entanto, a proximidade com as eleições de 2010 fez com que humoristas e veículos de comunicação se mobilizassem contra a restrição legal. Desde então, passaram-se mais três eleições até que o processo fosse pautado para julgamento pelo sucessor de Ayres Britto na cadeira, o Min. Alexandre de Moraes.

Embora a recepção positiva seja uma lufada de ar fresco em uma corte submetida a níveis extraordinários de pressão, a decisão parece ter um caráter mais simbólico que efetivo.

Isso porque a jurisprudência do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e dos Tribunais Regionais Eleitorais (TRE) está razoavelmente bem consolidada no sentido de que a crítica política pode se manifestar das mais diversas formas, inclusive por meio do humor.

Pesquisa no site do TSE[3] revela apenas 11 acórdãos da corte superior a respeito do inciso do artigo de lei recentemente declarado inconstitucional. Tribunais Regionais Eleitorais também trazem poucas decisões a respeito: Acre, Tocantins e Bahia têm uma cada; Mato Grosso tem duas; Alagoas e Rio de Janeiro têm três cada; Rio Grande do Sul e Rondônia têm quatro cada; Paraná tem cinco; Minas Gerais tem seis; São Paulo tem sete; Distrito Federal tem 12 e Santa Catarina tem 15.

No entanto, nenhum dos casos do TSE encontrados na pesquisa diz respeito à situação temida pela ADI e pelos humoristas[4] (isto é, o impedimento de publicar ou a ordem para retirar conteúdo produzido pela imprensa e/ou por humoristas).

As decisões do TSE referem-se todas a agressões entre candidatos. Não foram localizados, a princípio, situações em que um humorista era processado por um político em razão de charge, sátira ou programa televisivo.

Ocorre que o artigo 55 da Lei 9.504/1997, que regulamenta a propaganda eleitoral gratuita veiculada pelos candidatos[5], traz alguns parâmetros que ela deve obedecer. Esses parâmetros eram estabelecidos por remissão ao artigo 45 (que teve os incisos II e III suspensos e depois revogados pela decisão do STF). Daí porque pesquisa pelo artigo 45, inciso II, trouxe apenas decisões sobre troca de acusações entre políticos, já que, para decidir esses conflitos, o tribunal era obrigado a utilizar os padrões ditados por esse dispositivo legal.

Apenas ocasionalmente havia nessa troca de farpas algum elemento humorístico. E, quando havia, as decisões corriam majoritariamente no sentido de admiti-lo como um mecanismo para “dar relevo às críticas”. Tome-se como exemplo o caso em que uma coligação buscava associar o candidato adversário ao personagem “João Plenário”, do programa A Praça é Nossa, um deputado corrupto, notório por uma mamadeira e os bolsos cheios de dinheiro. Para entender legítima a propaganda, o TSE utilizou os seguintes fundamentos:

A orientação da Corte está assentada no sentido de que a crítica aos homens públicos, por suas desvirtudes, seus equívocos, falta de cumprimento de promessas eleitorais sobre projetos, ainda que dura, severa ou amarga, não enseja direito de resposta. A paródia ou sátira podem dar relevo às críticas. Tenho certeza que tais recursos não merecem ser, em tese, coibidos, sob pena de inibir a imaginação nas campanhas eleitorais. No caso dos autos, não identifico que o programa da recorrente tenha degradado o candidato da coligação recorrida[6].

Nos Tribunais Regionais Eleitorais, o quadro é parecido.

De Alagoas, veja-se, por exemplo, acórdão que entendeu lícita propaganda veiculada em rádio, parodiando a novela “A Favorita”, com sátiras a outro candidato à prefeitura de Maceió[7].

De Santa Catarina vem decisão que entende lícita propaganda de candidato ao governo do Estado que utilizava encenação com viés humorístico para criticar secretarias criadas pelo rival durante seu mandato, sugerindo que elas seriam ineficientes e configurariam meros cabides de emprego[8].

Contudo, pesquisas apenas pelo artigo de lei podem não refletir o panorama real da jurisprudência, em virtude de possíveis falhas de indexação das decisões pelos sites dos tribunais. Como contraprova, foram feitas pesquisas somente com o termo “humor”, sem menção a legislação[9]. Ainda assim foram encontrados pouquíssimos acórdãos sobre restrição a material produzido por humoristas[10], e na grande maioria deles houve desfecho favorável à liberdade de expressão.

O único resultado contrário ao humor veio de Pernambuco, e envolvia esquete do Casseta & Planeta: Urgente! com as famosas Organizações Tabajara. Não obstante, não é possível saber maiores detalhes porque o inteiro teor do acórdão não está disponível, mas apenas sua ementa[11].

Entre os casos que tiveram desfecho pró-humor, destaca-se precedente do TRE-SP. Consta que, em julho de 2004, o Programa do Jô exibiu entrevista com pesquisadora que estudava mensagens deixadas em portas de banheiros públicos. A certa altura registrou-se o seguinte diálogo entre ela e o apresentador Jô Soares:

– Insultos também?

– Inclusive insultos.

– Maluf é honesto! Aquelas coisas assim? [risos]

– Esse tipo de xingamento.

Segundo o acórdão que julgou a representação ajuizada por Paulo Maluf:

(…) as alusões foram realizadas dentro de um contexto que não indica o propósito de manifestar opinião desfavorável ao candidato (…) o senhor Jô Soares, rotineiramente, utiliza-se de forte apelo humorístico, sendo que o comentário externado encontra-se, assim, dentro da seara da livre expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, de cunho político-humorística, sem propósito de ofender a honra do recorrente ou externar opinião desfavorável ou contrária. Tratou-se de uma singela brincadeira, mais uma das expressões de humor, inerentes à formação humorística do entrevistador, por isso, os risos constantes da transcrição[12].

Noutra decisão, entendeu-se lícita a veiculação de charges por jornal de Louveira/SP, a respeito de candidato a prefeito que seria preconceituoso:

Quanto à charge, não me parece agressiva. Apenas faz referência, com o humor ácido inerente a esse tipo de ilustração, a fatos passados da vida política do recorrente. Esse tipo de ilustração é prática usual dos jornais que escolhem um assunto de destaque e de forma bem-humorada fazem uma caricatura de seus personagens centrais[13].

Como se viu, mesmo diante do artigo de lei que procurava restringir a produção de humor em período eleitoral, o número de casos que efetivamente instituíam tal restrição era mínimo.

Ainda assim, num contexto em que ainda há notícias de restrições judiciais à sátira a pessoas públicas[14], o caráter simbólico do precedente do STF não é desprezível[15]. Como disse a presidente da Corte, ministra Cármen Lúcia, “é surpreendente que, mesmo 30 anos após a promulgação da Constituição de 1988, o STF ainda tenha que reafirmar a prevalência das liberdades de imprensa e de expressão”[16].

A decisão, portanto, serve para ressaltar a relevância da liberdade de manifestação do pensamento no contexto político-eleitoral, bem como sua incompatibilidade com restrições prévias que o legislador volta e meia tenta introduzir no ordenamento jurídico.

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[1] Os votos vencidos declaravam a inconstitucionalidade parcial das normas, mediante interpretação conforme (isto é, vedando que as normas impugnadas fossem interpretadas no sentido de proibir humoristas de produzir charges, sátiras e programas humorísticos que envolvam candidatos, partidos ou coligações). O Min. Ricardo Lewandowski, durante os debates que se seguiram à leitura do voto de Ayres Britto, disse o seguinte: “Mas, Ministro, jamais se interpretou literalmente esse inciso. Eu fiz uma pesquisa e não há na história do TSE – pelo menos na recente -, desde o advento da Constituição cidadã de 88, nenhum caso em que se condenou alguém por ter veiculado uma sátira, uma charge, um programa de humor. Isso me parece absolutamente surpreso, perplexo, estupefacto que essa questão venha a ser suscitada, agora, a trinta dias do término das eleições, sem que haja nenhum fato modificativo da situação que vige não só há treze anos, mas há dezessete anos”. Porém, acabou prevalecendo a visão de Ayres Britto, segundo a qual a Lei 12.034/2009, de ampla repercussão negativa na imprensa, teria um efeito censório, como destacou o Min. Cezar Peluso: “Com o devido respeito, ainda que não tivesse havido nenhum fato, a mera possibilidade teórica de que a norma seja invocada para sustentar a restrição é suficiente a que o Tribunal julgue a norma”. (STF. Pleno. Medida cautelar na ADI 4451/DF. Rel. Min. Ayres Britto, julg. 02.09.2010)

[2] De acordo com a Lei 12.034/2009, “Entende-se por trucagem todo e qualquer efeito realizado em áudio ou vídeo que degradar ou ridicularizar candidato, partido político ou coligação, ou que desvirtuar a realidade e beneficiar ou prejudicar qualquer candidato, partido político ou coligação”, ao passo que “Entende-se por montagem toda e qualquer junção de registros de áudio ou vídeo que degradar ou ridicularizar candidato, partido político ou coligação, ou que desvirtuar a realidade e beneficiar ou prejudicar qualquer candidato, partido político ou coligação”.

[3] Disponível em: http://www.tse.jus.br/jurisprudencia/decisoes/jurisprudencia. A pesquisa foi feita marcando o TSE e todos os TRE, no período de 01.01.1997 a 02.09.2010 (data do julgamento da medida cautelar na ADI 4451), escolhendo, no campo “legislação” a opção “LEI ELEITORAL – NORMAS PARA AS ELEICOES 9504”, e inserindo no campo “ART” o número 45, e no campo “INC” o número 2, e marcando no “tipo de decisão” apenas a opção “acórdão”. A pesquisa, porém, tem suas limitações, sendo a principal delas a impossibilidade de acesso ao inteiro teor de alguns acórdãos, em virtude da provável falta de digitalização de decisões mais antigas em alguns TRE (ainda que as ementas tenham sido suficientes para afirmar que as controvérsias diziam respeito a políticos se ofendendo entre si, e não sofrendo supostas ofensas de humoristas).

[4] O temor de que o artigo resultasse em censura foi destacado por Marcius Melhem, Fábio Porchat e Bruno Mazzeo em visita ao relator da ação, Min. Alexandre de Moraes. (TEIXEIRA, Matheus. Humoristas vão ao STF para impedir veto a piada contra políticos nas eleições. Jota, 07.06.2018. Disponível em: https://www.jota.info/coberturas-especiais/liberdade-de-expressao/humoristas-stf-impedir-censura-a-piada-politicos-07062018. Acesso em 16.07.2018)

[5] “Art. 55. Na propaganda eleitoral no horário gratuito, são aplicáveis ao partido, coligação ou candidato as vedações indicadas nos incisos I e II do art. 45”. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9504.htm. Acesso em 15.07.2018.

[6] TSE. Recurso especial eleitoral 20.745. Rel. Min. Luiz Carlos Madeira, julg. 26.09.2002.

[7] TRE-AL. Recurso eleitoral 575. Rel. Juiz André Luiz Maia Tobias Granja, julg. 18.09.2008.

[8] TRE-SC. Recurso em representação 2301. Rel. Juiz Oscar Juvêncio Borges Neto, julg. 05.09.2006.

[9] Do mesmo modo que a pesquisa anterior, esta foi feita marcando o intervalo de 01.01.1997 a 02.09.2010, em todos os TRE e no TSE.

[10] Dez acórdãos no TSE (todos eles relacionados ao caso do personagem d’A Praça é Nossa, citado), quatro em São Paulo, dois em Pernambuco e Alagoas, um no Paraná e no Maranhão (sendo que neste último Estado, a decisão nada tem a ver com o tema discutido, e aparece na pesquisa apenas porque a certa altura do acórdão se menciona que “Os princípios da presunção de legalidade e legitimidade dos atos do poder público, da eficiência da administração pública, da não surpresa e da boa-fé militam a favor do candidato impugnado que não pode, como qualquer cidadão, ficar a mercê dos humores dos funcionários públicos” – TRE-MA. Recurso eleitoral 5711. Rel. Roberto Carvalho Veloso, julg. 02.09.2008).

[11] Eis a ementa da decisão: “REPRESENTAÇÃO. DIREITO DE RESPOSTA. AGRAVO. DIVULGAÇÃO DE TEXTO E DE IMAGENS QUE EXPÕEM AO RIDÍCULO O CANDIDATO AGRAVANTE. RESTOU COMPROVADO NOS AUTOS O DESRESPEITO AOS COMANDOS DA LEGISLAÇÃO ELEITORAL. EXISTÊNCIA DE SÁTIRA JACOSA, COM TEXTO E IMAGENS MALDIZENTES, CAPAZ DE AFETAR A HONRA OBJETIVA, A IMAGEM OU A REPUTAÇÃO DO IRONIZADO. QUADRO DE HUMOR ORGANIZAÇÕES TABAJARAS. VIOLAÇÃO DO § 1º DO ART. 32 DA RESOLUÇÃO 20.988-TSE. AGRAVO A QUE SE NEGOU PROVIMENTO. DECISÃO UNÂNIME” (TRE-PE. Representação 349. Rel. Fernando Cerqueira Norberto dos Santos, julg. 19.09.2002)

[12] TRE-SP. Recurso cível 19631. Rel. Juíza Suzana Camargo, julg. 03.08.2004.

[13] TRE-SP. Recurso eleitoral 30409. Rel. Juiz Paulo Alcides, julg. 30.09.2008.

[14] Por exemplo, os perfis no Facebook “João Dólar Júnior” e “João Escória”, satirizando o ex-prefeito de São Paulo, João Dória, como lembrado em: ALMEIDA, Eloísa Machado de. Mesmo com legislação suspensa, páginas de políticos foram retiradas do ar. Folha de S. Paulo, 21.06.2018. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2018/06/mesmo-com-legislacao-suspensa-paginas-com-satira-a-politicos-foram-retiradas-do-ar.shtml. Acesso em 13.07.2018.

[15] Nesse sentido, por exemplo, o editorial da Folha de S. Paulo, Humor sem veto, de 25.06.2018: “Bem ou mal, o excesso de zelo e o renitente espírito censório dos legisladores acabou encontrando uma barreira definitiva no STF. (…) apesar da decisão do STF, esse fantasma continua rondando a legislação brasileira” (Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2018/06/humor-sem-veto.shtml. Acesso em 13.07.2018).

[16] Dispositivos da lei das eleições que vedam sátira a candidatos são inconstitucionais. Disponível em: http://www.migalhas.com.br/Quentes/17,MI282336,11049-Dispositivos+da+lei+das+eleicoes+que+vedam+satira+a+candidatos+sao. Acesso em 15.07.2018.