Imagem: Wellerson_Araujo

O cartunista Henfil, célebre pelos quadrinhos críticos à ditadura militar brasileira, propunha um humor combativo e que tinha como alvo preferencial os poderosos. Isso, no entanto, não impediu que em dado momento da sua carreira ele criasse a personagem “Bichonilda”, associada ao bordão “Alô, bicha!”, que, em entrevista, ele considerava quase “coloquial”. Henfil, numa espécie de mea culpa, afirmou mais tarde que humor que utiliza preconceitos “deixa de ser uma coisa libertadora e passa a ser aprisionadora. Ele acelera um processo que poderia ser evitado”[1].

Fato é que, conforme grupos mais vulneráveis passam a ganhar voz, o humor feito às suas custas, antes tido como natural, é cada vez mais questionado. As redes sociais e a imprensa registram reações difusas e veementes contra diversas manifestações consideradas como preconceituosas. Mas o que ocorre quando esse tipo de questão é levada ao Poder Judiciário? Um exemplo interessante pode ser visto em ação ajuizada pela Defensoria Pública do Estado de São Paulo contra vídeos do canal do YouTube “Mundo Canibal”.

No primeiro deles, chamado “Piripaque”, postado em 04/03/2011 e com mais de 1 milhão de visualizações (e 6,4 mil reações de “gostei” e 432 de “não gostei”), há o seguinte texto:

Narrador: “Sabe aquelas situações onde você sabe o que quer fazer mas não tem coragem de fazer? Por exemplo… Você fica numa puta fila no supermercado e acabou a bobina”

Caixa do supermercado: “Acabou a bobina! Bobila! A tup! Popzila! Vou trocar rapidinho pro sinhô! Coisa de uns vinte minutinhos! Só vinte minutinhos!”

Narrador: “Para essas situações, o Mundo Canibal lançou o remédio Piripaque. Tomou, pirou!”

[Cliente do supermercado toma o remédio, sofre alterações e lança um jato de superpoder (Hadouken, referência ao desenho animado Dragon Ball Z) contra a caixa]

Narrador: “Sua namorada disse que está grávida?”

[Homem dá um soco na barriga da namorada, que expele o feto pela boca]

Narrador: “Descobriu que o Chuq Nóia quer te matar?”

[Homem leva um soco do Chuq Nóia, referência ao astro de filmes de ação Chuck Norris]

Narrador, em voz acelerada: “Esse produto não é indicado contra Chuq Nóia”

Narrador: “Sua mãe acabou de te contar que é uma prostituta?”

[Criança expele jato de super poder contra a mãe]

Narrador: “Seu único filho homem acabou de declarar que é homossexual?”

Filho: “Ó, pai, tá na hora de você virar homem e encarar a realidade. Eu sou homossexual! Tem que ser mais moderno, mente aberta, mente aberta”

Narrador: “Toma um Piripaque!”

[Pai dá um tiro na barriga do filho, que pede para o pai parar. O pai dá então outro tiro no filho]

Narrador: “Atenção! O uso desse medicamento pode causar dependência”

[O pai continua atirando no filho enquanto ri de modo enlouquecido]

Filho: “Você não sabe, você não sabe! Não é culpa minha, eu nasci assim! Paraaaaaa”

[Pai continua atirando. A tela fica preta enquanto o som de tiros continua]

Narrador: “Você já sabe! Tome um Piripaque ou tome no clube… do Bolinha!” [Risos do narrador]

O segundo vídeo, chamado “Whatahell Prostituto com o Sr. Donizildo” (publicado em 17/05/2016, com 486 mil visualizações, 27 mil reações de “gostei” e 1,2 mil de “não gostei”), retrata situação em que um homem, surpreso com o fato de a garota de programa que entrou em seu carro ser transexual, executa nela uma série de “operações” para a tornar “uma mulher” e não “enganar” mais ninguém (nas palavras do próprio vídeo).

Há uma mensagem logo no início dessa segunda esquete: “AVISO – Os Irmãos Piologo brincam com tudo e todos e você SEMPRE RI, então esperamos que quando brincarmos com algo particular a você, que você leve na brincadeira também. Pense nisso e você sempre vai se divertir. AFINAL ISSO É TUDO APENAS UMA ‘ZUEIRA’ E NÃO DEVE SER LEVADO A SÉRIO”.

O aviso não convenceu a Defensoria, que pleiteou a remoção dos dois vídeos do YouTube e indenização por danos morais coletivos no importe de R$ 500.000,00 (quinhentos mil reais), tendo em vista que “os expectadores dos vídeos estão sujeitos a serem induzidos a praticar a discriminação e até mesmo os crimes sugeridos nos vídeos como forma de solucionar o que eles entendem por serem comportamentos problemáticos”[2].

A Defensoria sustenta, na petição inicial, que os vídeos contêm incitação ao crime de aborto provocado por terceiro (contra a namorada grávida), lesão corporal e homicídio (contra o filho gay), além de tortura e lesão corporal (contra a prostituta transexual), o que configuraria “inequívoca manifestação de ódio e desprezo a determinados grupos sociais, que, neste caso, são as pessoas lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais (LGBT), mulheres, crianças e adolescentes. Este discurso de ódio é incompatível com o respeito à dignidade da pessoa humana, não só da pessoa, individualmente considerada, mas da dignidade de coletividades”[3].

A inicial defende, em resumo, que discurso de ódio contra minorias notoriamente vítimas de violência não é algo protegido pela liberdade de expressão.

A sentença da 44ª Vara Cível do Foro Central de São Paulo, porém, julgou os pedidos improcedentes. Segundo o juiz Guilherme Madeira Dezem, “a liberdade de expressão não permite manifestações de conteúdo imoral que configurem ilícito penal, ainda que se trate de uma opinião. Assim, a contrario sensu, conclui-se que manifestações do pensamento não podem ser restringidas, se lícitas penalmente”. Para o magistrado, “o conteúdo objeto deste litígio se encontra em linha limítrofe: não há o claro cometimento de crime por parte dos réus, nem mesmo na questionável figura jurídica da ‘apologia ao crime’”. Diante dessa situação, “por mais desprezíveis que as mensagens veiculadas pelos réus possam parecer (e a meu juízo são desprezíveis), não se tem a caracterização/o de ilícito penal a justificar a intervenção estatal”[4]. Vale notar que a sentença foi proferida em 18/09/2017, ou seja, antes de o Supremo Tribunal Federal equiparar a homofobia ao crime de racismo, o que ocorreu em 13/06/2019.

A sentença emite opinião estética sobre os vídeos, mas não a tem como fator preponderante para o resultado da decisão, como se observa no seguinte trecho: “Vi o conteúdo por mais de uma vez: representam, quando muito, uma versão piorada e sem talento daquele famoso desenho ‘South Park’. No entanto, este juízo estético é unicamente meu e pode ser que haja quem goste dos desenhos dos réus ou veja neles talento”[5].

Insatisfeita, a Defensoria apelou ao TJSP, que continuou rejeitando o pedido para remoção dos vídeos, mas determinou o pagamento de indenização de R$ 80 mil reais a título de danos morais coletivos. O voto da desembargadora Clara Maria Araújo Xavier, que foi seguido pelo colegiado, afirma que “com a correta impossibilidade de se exercer qualquer censura prévia de conteúdos disponíveis na internet, não se pode negar que tal controle social há de ser feito pela responsabilização posterior”[6].

Para a desembargadora, “não se pode judicializar a arte (uma vez que o exercício da atividade jurisdicional não se destina à crítica artística)”[7]. No entanto, o acórdão acaba por atribuir ao humor uma missão muito específica: “ao analisar o conteúdo dos vídeos, não me parece que os requeridos tenham, de fato, a menor noção da relevantíssima função social do humor – o qual dizem praticar – como forma de inclusão, reflexão e de crítica/denúncia social”[8].

O acórdão acolhe parecer do Ministério Público segundo o qual “O ‘humor’ do vídeo decorre da identificação: somente quem compartilha do desejo de realizar tais atos de violência, ou que os entendam no seu íntimo, como naturais, diante das situações narradas, irá achar graça no material. O vídeo reforça machismo e homofobia e ainda naturaliza atos de violência contra minorias, tratando-os como se integrassem o inconsciente coletivo, como se as violências retratadas constituíssem desejos reprimidos, mas existentes em todos nós, bastando um remedinho para liberá-los”[9].

O acórdão também refuta os argumentos centrais (e interrelacionados) de defesa dos autores do vídeo. Primeiro, de que os avisos do início do vídeo evidenciariam o caráter humorístico (e portanto não realista) dos vídeos. A relatora entendeu que os avisos são somente pro forma. Segundo, que o vídeo retrataria situações absolutamente irreais e fantasiosas. Quanto a isso, o TJSP sustenta que não é crível que os humoristas não saibam do número de situações de violência (algumas pavorosamente semelhantes às descritas nos vídeos) sofridas pela população ali retratada[10]. Chama a atenção, aliás, que justamente no segmento do filho gay os autores do vídeo optem por retratar a descarga de raiva do pai com o uso de uma arma, e com muito sangue, e não com um jato de superpoder como nos outros casos. A opção por um “realismo” maior, reminiscente da violência sofrida pela população LGBT, em vez de algo mais fantasioso, pode ser um dos fatores que dão suporte à conclusão do TJSP de que o vídeo configura discurso de ódio.

Se por um lado já foi demonstrado nesta coluna que muitas vezes falta ao Judiciário “competência humorística” para reconhecer um discurso como jocoso e por isso não sério, por outro também não faltam situações em que discurso preconceituoso recorre ao argumento de que “é só uma piada” para tentar se justificar e escapar das sanções penais e civis previstas contra ele. Nesse sentido, por exemplo, uma piada racista contada por um membro da Ku Klux Klan não pode ser compreendida apenas como uma piada. Para Michael Billig, “é difícil argumentar que uma piada dessas não é racista quando ela está sendo transmitida num contexto explicitamente racista”[11].

O caso em discussão se mostra tão difícil justamente porque o canal dos Irmãos Piologo no YouTube não é o site de uma organização declaradamente homofóbica, transfóbica ou misógina. Os desenhos são repletos de exageros tanto nos traços e nas cores como nas vozes dos personagens. Há, antes das manifestações especificamente impugnadas pela Defensoria, esquetes que aludem a situação cotidiana (aborrecimento no supermercado) e a outra puramente ficcional (desafiar um astro de filmes de ação), o que poderia sustentar uma lógica de total absurdo nos vídeos (em que pese, repita-se, haja uma escolha estética e temática eloquente para que justamente apenas uma das vítimas de quem toma o remedinho ficcional do vídeo seja alvejada com tiros).

Há, acima de tudo, o risco de os Irmãos Piologo se verem (ou serem vistos) como “mártires da liberdade de expressão”. Existe de fato a pretensão dos autores do vídeo serem uma espécie de Charlie Hebdo brasileiro, uma espécie de enfant terrible do humor que tem o objetivo declarado de chocar e provocar – algo visto, por exemplo, em outro vídeo do canal, intitulado “Pedophilinho, o padre safadinho”, que se inicia com um aviso “Aos hipócritas” que “isso é apenas humor e não é pra ser levado a sério”.

Contudo, o próprio Charb, editor-chefe do Charlie Hebdo e autor de algumas das charges mais provocativas e incendiárias do periódico, era um crítico contumaz de manifestações xenofóbicas de políticos que utilizavam como escudo justamente o humor. A Frente Nacional, dizia ele, “não quer simplesmente ter uma política racista, quer também que não a critiquem por isso. Espera que uma boa gargalhada sancione suas ações medonhas”[12].

Em casos limítrofes como este do “Mundo Canibal”, é difícil precisar se medidas extrajudiciais configurariam uma reação mais legítima (a possível desmonetização do vídeo pelo YouTube, por exemplo) ou se, dada a violência explícita a atuação de um ente representativo como a Defensoria Pública, pleiteando indenização a ser revertida para ações afirmativas, não é realmente o melhor caminho (o que de todo modo soa muito mais adequado do que se uma única pessoa ou uma associação sem representatividade ingressasse em juízo se dizendo ofendida, a exemplo do que já ocorreu em outros casos).

Chama a atenção o fato de o acórdão atribuir ao humor uma função social de “inclusão, reflexão e crítica/denúncia”, como se a expressão desprovida desses atributos não fosse humor ou fosse humor de uma segunda categoria. Não é possível exigir sempre do humor o atendimento desses pressupostos (o que deixaria desprotegidas, por exemplo, expressões como o cinema besteirol e o trocadilho). Tampouco é possível exigir do humor um viés progressista ou que não seja discriminatório – basta recordar que a própria televisão brasileira é carregada de representações estereotipadas de homossexuais, por exemplo, sem que isso configure propriamente um ilícito civil ou penal (vêm à lembrança alguns personagens do “Zorra Total”). A própria Rede Globo, todavia, reformulou sensivelmente o programa, que passou a veicular conteúdo muito mais crítico do ponto de vista político e menos discriminatório, o que é ilustrativo da alteração da menor aceitação social desse humor às custas de minorias.

O que é possível é reconhecer a ultrapassagem de determinadas barreiras pela expressão humorística, com as consequências inerentes previstas no texto constitucional. Embora como regra a liberdade de expressão deva ser privilegiada tanto quanto possível (inclusive em proporção muito maior do que usualmente garantida pelo Judiciário) é difícil engolir manifestações como as transcritas no início deste texto, que, se não contêm palavras de ordem de agressão a mulheres, gays e transexuais, contêm algo perigosamente limítrofe. Noutras palavras: por mais que os vídeos não sejam os primeiros, e nem os últimos, a veicular conteúdo que possa ser tido como homofóbico, transfóbico e misógino, não são tão comuns obras em que esses preconceitos são acompanhados de tanta violência.

O desfecho do processo ainda está em aberto. Cabem, em tese, recursos aos tribunais superiores, que, se admitidos, darão a eles a missão de enfrentar as difíceis questões que a ação traz. Esta coluna, mais longa que o habitual mas ainda assim demasiado limitada para apreciação do problema em profundidade, buscou dar ao público mais amplo os fatos e os argumentos nucleares das decisões judiciais, com o objetivo de contribuir para que, por meio da discussão de casos como o ora apresentado, se reforcem os compromissos tanto com a liberdade de expressão como o de repressão a seus eventuais abusos.

[1] HENFIL. Como se faz humor político: depoimento a Tárik de Souza. São Paulo: Kuarup, 2014. p. 33-34; 93.

[2] Petição inicial, autos nº 1059191-91.2016.8.26.0100, fl. 34.

[3] Petição inicial, autos nº 1059191-91.2016.8.26.0100, fl. 22.

[4] Sentença, autos nº 1059191-91.2016.8.26.0100, fl. 773-774.

[5] Sentença, autos nº 1059191-91.2016.8.26.0100, fl. 774.

[6] Acórdão, autos nº 1059191-91.2016.8.26.0100, fl. 1017.

[7] Acórdão, autos nº 1059191-91.2016.8.26.0100, fl. 1021.

[8] Acórdão, autos nº 1059191-91.2016.8.26.0100, fl. 1024.

[9] Acórdão, autos nº 1059191-91.2016.8.26.0100, fl. 1025.

[10] Acórdão, autos nº 1059191-91.2016.8.26.0100, fl. 1026.

[11] BILLIG, Michael. Violent racist jokes. In: LOCKYER Sharon; PICKERING, Michael (orgs.). Beyond a joke: the limits of humour. New York: Palgrave Macmillan, 2009. p. 38.

[12]  CHARB. Pequeno tratado da intolerância: crônicas e desenhos do diretor do Charlie Hebdo. Trad. Jorge Bastos. São Paulo: Planeta, 2015. p. 207.

João Paulo Capelotti

Doutor e mestre em direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Membro associado da International Society for Humor Studies (ISHS) e da International Society for Luso-Hispanic Humor Studies (ISLHHS). Advogado.