Ilustração: Caio Borges

Não é a primeira vez que uma proposta legislativa que fere de morte a liberdade de expressão na Internet é renegada por seus autores. Na primeira situação, o Deputado Áureo chegou a pedir o veto presidencial de artigo que ele mesmo incluiu em proposta de mudança legislativa. Alegou que sua proposta não tinha intenção de promover a censura. Dessa vez, foi o Conselho de Comunicação Social quem negou apoio a uma proposta e precisou se esquivar das acusações de censura.

A nova história da proposta que ninguém apoia teve origem na semana passada, quando todos aqueles que prezam pela liberdade de imprensa e de expressão foram surpreendidos pela pauta da reunião do Conselho de Comunicação Social (CCS). A pauta anunciava que nesta segunda-feira (05 de março) um anteprojeto de lei (APL)[1] para combater as notícias falsas na Internet seria apresentado e discutido naquele colegiado.

O anteprojeto que veio a público causou graves preocupações em meios de comunicação e na sociedade civil (veja o posicionamento da Coalizão Direitos na Rede). Repleto de problemas, o APL seguia a mesma linha de outras propostas regulatórias[2] que debilitam o debate público a pretexto de protegê-lo.

Diante da comoção e da pressão vinda dos diversos setores da sociedade, a reunião desta segunda-feira (veja o vídeo aqui) teve início buscando desfazer o tremendo mal-estar entre todos os presentes. Quem teria solicitado o malfadado anteprojeto? Teria o CCS competência para fazê-lo? O presidente do Conselho apressou-se a dizer que o CCS não elaborou o anteprojeto e que “o tema não deveria ter sido encaminhado como uma minuta de anteprojeto”, mas que o Conselho tem atribuição para solicitar estudos para a consultaria legislativa do Senado Federal a respeito do problema das fake news.

A discussão entre os presentes indicou que tudo não teria passado de um grande equívoco na apresentação dos resultados deste estudo, que não deveria ter tomado a forma de um anteprojeto de lei. Ao fim e ao cabo da discussão, o CCS recuou e rejeitou o anteprojeto sem discuti-lo.

O passo atrás do Conselho, apesar de boa notícia para todos que ficaram com os cabelos em pé diante da proposta, veio seguido de reafirmação da disposição em fazer um debate aberto a todos (como devem ser os debates democráticos) para apresentar recomendações sobre o tema.

Se o Conselho realmente pretende empenhar-se na hercúlea tarefa de discutir as fake news, há muitas recomendações que o colegiado precisa considerar. A mais importante, talvez, seja a de buscar soluções radicalmente distintas daquelas que este APL buscava avançar (criminalização e destruição das garantias à livre expressão existentes no Marco Civil). Seria extremamente pertinente, ainda, que os Conselheiros prestigiassem as recomendações de organismos internacionais e independentes, bem como os padrões dos tratados internacionais que tratam da livre expressão.

O tema das fake news é extremamente complexo porque definir o que é falso ou verdadeiro é uma tarefa das mais espinhosas. O tempo de apuração jornalístico e a construção de investigações sobre temas da vida pública são exemplos disso. Nem sempre toda a verdade vem à tona logo no primeiro momento, e limitar o trabalho jornalístico ou a discussão na sociedade é um tiro no pé no amadurecimento da opinião pública diante das múltiplas versões sobre os fatos de interesse social. Não à toa, uma das primeiras teorias que historicamente fundamenta a livre expressão (a busca da verdade), foi sendo gradativamente substituída em nome de teorias que afirmam que a desinformação se combate com mais livre expressão e informação, não com menos.

É aqui que mora a primeira falha grave do anteprojeto. Carecendo de fundamento teórico sobre a liberdade de expressão (ou de técnica legislativa), o APL que seria discutido pelo CCS ignora os debates conceituais sobre o que de fato são fake news (veja este exemplo). O texto apresentou uma definição vaga e ampla de notícias falsas, que acabaria por abarcar quase todo o tipo de conteúdo noticioso, incluindo a atividade da imprensa e o jornalismo cidadão.

O projeto define como crime o ato de “Criar ou divulgar notícia que sabe ser falsa e possa distorcer, alterar ou corromper gravemente a verdade…”, passível de pena de seis meses a dois anos de prisão. A pena pode ir até três anos se a notícia “corromper gravemente a verdade relacionada ao processo eleitoral”. Vale dizer que a pena é mais grave (tornando maior a ameaça a quem se expressa) justamente no momento da democracia em que a liberdade de expressão é mais importante: as eleições.

Como já mencionado, a criminalização da conduta vai na contramão das recomendações internacionais sobre liberdade de expressão, incluindo a declaração conjunta dos relatores de liberdade de expressão da ONU, OEA e outras organizações sobre o tema, que afirma que “proibições genéricas da disseminação de informações baseadas em ideias vagas e ambíguas, incluindo notícias falsas’ e ‘informações não-objetivas’, são incompatíveis com os padrões internacionais sobre liberdade de expressão e deveriam ser abolidas.”

Após criminalizar a conduta, o anteprojeto procura minimizar o alcance da norma por meio da definição de notícias falsas como “o texto não ficcional que, de forma intencional e deliberada, considerada a forma e as características da sua veiculação, tenha o potencial de ludibriar o receptor quanto à veracidade do fato”. Também exclui do alcance da lei artigos de opinião e a atividade literária, artística, ou o texto de conteúdo humorístico.

Ainda que as exceções possam parecer suficientes, a possibilidade de punição criminal terá efeito devastador sobre a liberdade de expressão na rede, gerando aquilo que os especialistas em liberdade de expressão chamam de chilling effects, ou um “efeito resfriador do discurso”. Na guerra eleitoral, normas como essas podem estimular a intimidação do dissenso político por meio da ameaça judicialização, inibindo o jornalismo e a crítica aos detentores de cargos públicos.

A parte mais absurda do projeto, entretanto, é aquela que altera o Marco Civil da Internet. Como se num passe de mágica a lei fosse capaz de criar uma realidade perfeita, o anteprojeto determina que os intermediários de internet “devem adotar medidas efetivas e transparentes para combater a publicação e a disseminação de notícias e perfis falsos” (a proposta não define o que são perfis falsos). Não deveria ser preciso dizer que, se fosse assim tão simples, o problema das notícias falsas sequer existiria.

Em seu último ato, a proposta em debate ainda trazia um artigo que, se aprovado, amplificaria os graves problemas já existentes e daria impulso a uma verdadeira indústria de remoção da expressão online. Ignorando tudo o que se conhece sobre responsabilidade dos intermediários, a proposta determinava que empresas como Google, Twitter e Facebook deveriam remover ou bloquear conteúdos em até 24 horas após uma reclamação, sob pena de multas que poderiam atingir até 5% do faturamento dessas empresas.

Como tantos estudos empíricos já documentaram, o resultado seria desastroso. Diante da impossibilidade de analisar os milhares de conteúdos denunciados (alguns denunciados certamente por conta do posicionamento político), as plataformas de internet tenderiam a agir cautelosamente para se proteger contra as pesadas multas e, fatalmente, optariam por remover conteúdos legítimos para evitar punições e os custos de litigar.

A análise aprofundada do anteprojeto que morreu sem ser apresentado (e sem um autor para chamar de pai) poderia levantar outros problemas que este texto não inquiriu. Entretanto, algumas coisas já são certas: o problema das fake news é complexo e possui muitas nuances. Há um conjunto de problemas e forças atuando para a disseminação de notícias falsas. Estes problemas vão muito além das plataformas de internet, e passam pela precarização do trabalho do jornalista, pela busca incessante por audiência, por disputas políticas no âmbito doméstico e disputas geopolíticas internacionais muito difíceis de capturar.

Qualquer proposta que acredite que a criação de tipos penais e ameaça de duras penas a usuários e prestadores de serviço irá resolver o problema das fake news é, na melhor das hipóteses, infantil. Na pior, irá destruir os alicerces da livre expressão e da democracia.

[1] Anteprojeto de lei é o nome dado a uma proposta legislativa que ainda não foi apresentada para debate em uma das casas do Congresso Nacional. Ou seja, o projeto está numa fase que antecede o início da sua tramitação no legislativo.

[2] Outras propostas problemáticas incluem o PL 9647/2018 e os PLs que tramitam apensados ao PL 6812/2017. As propostas, via de regra, trilham o equivocado caminho da criminalização. Essas propostas, se aprovadas, terão efeitos nefastos para a liberdade de expressão e de imprensa no país.

Luiz Fernando Marrey Moncau

É fellow no Center for Internet and Society da Stanford Law School, onde também foi pesquisador. Foi coordenador do Centro de Tecnologia e Sociedade (CTS), da FGV DIREITO RIO. Formado pela PUC-SP, mestre e doutorando em Direito Constitucional pela PUC-Rio. Co-autor das pesquisas “O Estado Brasileiro e a Transparência” e “Avaliação de Transparência do Ministério Público” e autor do livro Liberdade de Expressão e Direitos Autorais, publicado em 2015 pela Elsevier. Visite sua página na Stanford Law School: http://cyberlaw.stanford.edu/about/people/luiz-fernando-marrey-moncau