Imagem: Invite-only chat app Clubhouse booms in all over the world por Marco Verch | Creative Commons 2.0

 

O aplicativo mais comentado no Brasil, no momento em que esta coluna é escrita, atende pelo nome de Clubhouse. Por enquanto disponível apenas para iPhone, o app permite a criação de salas temáticas nas quais a interação entre os membros se dá exclusivamente por áudio. A inclusão depende de chamado de quem já está lá dentro, o que tem contribuído para a curiosidade sobre o aplicativo e também tornou o ingresso nele bastante cobiçado (consta, aliás, que há convites sendo vendidos no Mercado Livre por centenas de reais). Qualquer um pode abrir uma sala, mas normalmente as que têm maior repercussão são as ancoradas ou frequentadas por famosos, como a cantora Anitta, ou gurus do mercado e do marketing digital, como o CEO do McDonald’s no Brasil. Emissoras como a CNN e jornais como o Estadão têm utilizado o aplicativo para reuniões de pauta e para discutir o que o futuro reserva à comunicação.

Não deixa de ser curioso o retorno à voz, depois de praticamente duas décadas em que a comunicação esteve grandemente voltada para a linguagem escrita – com e-mails, blogs, redes sociais como o Orkut e o Facebook à frente da atenção das pessoas por tempo considerável. Discussões em redes sociais, longas conversas por MSN e o consumo de informação em jornais, do papel à tela do computador ou do celular, eram e ainda são em alguma medida pautadas no poder da palavra escrita. Vídeos no YouTube ou fotos no Instagram ocupam também seus papeis de destaque, mas o retorno da voz aos holofotes, hoje tão evidente, já vem de alguns anos, e pode ser evidenciado pela oferta crescente de podcasts sobre os mais variados temas (que acompanham milhões de pessoas principalmente em tarefas domésticas, exercícios ou no deslocamento ao trabalho), pelo sucesso de assistentes virtuais que obedecem a comandos de voz (sendo Alexa, da Amazon, a mais famosa) e mesmo pela progressiva inclusão da possibilidade de envio de áudios em aplicativos de trocas de mensagens (para desespero de alguns e felicidade de outros).

O humor, claro, não poderia ficar alheio a esse fenômeno. Quem nunca recebeu áudios encaminhados à exaustão contendo uma piada, uma declaração constrangedora que viralizou ou, para ficar num exemplo célebre de pegadinha à brasileira, um inconveniente gemido disfarçado no que deveria ser uma mensagem séria? A oferta de podcasts com proposta humorística também é imensa. No Clubhouse não é diferente. Tatá Werneck, por exemplo, já foi vista por lá performando imitações e trotes – mas também tem utilizado o aplicativo para interação próxima com fãs, que têm ali um canal direto, com talvez menos condicionantes que outras redes sociais, para lhe questionar, por exemplo, como ela lida com a fama (humanizando-a, em certa medida). O apresentador Celso Portioli participava de outra sala onde só se podia conversar imitando a voz de seu patrão Silvio Santos. Enfim, exemplos das possibilidades contidas neste novo meio não faltam.

Um aspecto central do aplicativo é a impossibilidade de reprodução e gravação, o que talvez explique por que os famosos parecem se sentir tão à vontade nesse ambiente, a ponto de baixarem a guarda se permitirem tamanho nível de interação com o público. Se no reinado da palavra escrita, da imagem e do vídeo, o print screen é o pesadelo de quem posta um determinado conteúdo na rede e se arrepende (que o digam os artistas e políticos “cancelados” que correm a apagá-los), soa quase mágica uma comunidade baseada na voz, insuscetível de captura de tela, e na qual a reprodução e a gravação do conteúdo não são permitidas. É essa mística de uma aparente espontaneidade em tempo real que confere o tom de conversa entre pares que os usuários do aplicativo tanto louvam.

Além disso, ao contrário de um esquete para o YouTube, como os feitos pelo Porta dos Fundos, o áudio humorístico em regra não exige grande produção. Sem a necessidade de figurinos e maquiagem, por exemplo, basta a burilação do próprio texto a ser gravado (ou a extraordinária capacidade de improviso que muitos artistas têm) – o que torna esta modalidade especialmente atraente em tempos de dinheiro curto e trabalho em casa. Camadas adicionais podem ser adicionadas na esteira da também longa tradição brasileira de gênios como Chico Anysio, notório pelas texturas, sotaques e timbres diferentes que era capaz de imprimir às vozes de suas centenas de personagens.

Porém, é conveniente lembrar que a voz recebe proteção jurídica e pode acabar protagonizando também processos judiciais. Por exemplo: em recurso julgado pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, a apresentadora Eliana e a TV Record foram condenadas a indenizar o também apresentador Cid Moreira por conta de um quadro em que um boneco com suas feições (e chamado pelo seu nome) reproduzia, com a imitação de sua voz característica e muito conhecida, “frases de cunho sexual e erótico”[i].

Na falta de disposição específica do Código Civil, a voz recebe a mesma proteção garantida à imagem pelo art. 20 – ou seja, permite-se, em regra, sua utilização apenas com a autorização do titular. Há exceções construídas pela jurisprudência a partir do texto legal, como, por exemplo, para o retrato jornalístico de fatos de interesse público e/ou de pessoas notórias. Assim, da mesma forma que a veiculação da imagem do presidente da República pode ser feita sem seu consentimento para fins jornalísticos, sua voz segue a mesma regra e independe de permissão para a ilustração de um fato do noticiário.

Mas e quanto à utilização desautorizada da voz para fins humorísticos? Infelizmente, a resposta não é clara. A ampla proteção conferida em tese à liberdade de expressão pela Constituição – na qual se inclui a expressão humorística, conforme reiterada interpretação do Supremo Tribunal Federal (veja-se, por exemplo, a ADI 4.451/DF, sobre sátira em período eleitoral) – deveria fazer a resposta ser positiva, mas a tolerância dos ofendidos e imitados (e dos tribunais que julgam seus casos) nem sempre acompanha a amplitude supostamente devotada para a liberdade de expressão.

Por outro lado, sendo a voz uma espécie de dado biométrico[ii] (inclusive utilizada para fins de reconhecimento de uma única pessoa, da mesma forma que a impressão digital e a íris), é de se esperar que haja especial preocupação quanto a seu vazamento. Embora o Clubhouse em tese não permita gravação e reprodução, mas apenas o acompanhamento de salas “ao vivo”, já foi registrado o caso de usuário que conseguiu gravar áudios e enviá-los para fora do aplicativo. Embora já banido permanentemente do sistema e com a falha retificada, parece só uma questão de tempo até que o app de voz se veja confrontado a essa outra faceta das repercussões jurídicas que acompanham o retorno da voz ao centro da comunicação.

[i] TJSP. 1ª Câmara de Direito Privado. Apelação 469.168-4/1-00 (9068098-74.2006.8.26.0000). Rel. Des. De Santi Ribeiro, julg. 06/03/2007.

[ii] “Mas enquanto a facilidade e a eficiência do reconhecimento de voz são claras, a privacidade e as obrigações de segurança associadas com essa tecnologia não podem ser subestimadas. Reconhecimento de voz normalmente é classificado como tecnologia biométrica, na medida em que permite a identificação de uma característica humana única (por exemplo, voz, discurso, modo de andar, impressão digital, íris ou padrão de retina) e, consequentemente, dados relacionados à voz se qualificam como informação biométrica e se transformam em informação pessoal, submetida a várias normas de privacidade e segurança” (As Voice Recognition Technology Market Surges, Organizations Face Privacy and Cybersecurity Concerns. National Law Review, v. 9, n. 58. Disponível em: https://www.natlawreview.com/article/voice-recognition-technology-market-surges-organizations-face-privacy-and. Acesso em 27/02/2021. Tradução livre. No original: “But while the ease and efficiency of voice recognition technology is clear, the privacy and security obligations associated with this technology cannot be overlooked. Voice recognition is generally classified as a biometric technology which allows the identification of a unique human characteristic (e.g. voice, speech, gait, fingerprints, iris or retina patterns), and as a result voice related data qualifies biometric information and in turn personal information under various privacy and security laws.”)