Ilustração: Bia Leme

Uma frase emblemática, e já um tanto clichê, sobre os tempos atuais indica que os dados são o petróleo da sociedade da informação. A afirmação vem na esteira das múltiplas mudanças sociais e tecnológicas que acompanhamos nas últimas décadas, incluindo a digitalização e a imensa ampliação da capacidade armazenamento e processamento de informações. Cada um desses processos contribuiu para a criação daquilo que se convencionou chamar de sociedade de informação, pós-industrial, ou sociedade em rede.

Uma das primeiras evidências dos abalos trazidos pelas possibilidades criadas na sociedade de informação manifestou-se no campo da cultura e do entretenimento. Dizia-se, em meados dos anos 90, que as indústrias da música e do cinema estariam morrendo. A dificuldade de conter a circulação de conteúdos inviabilizaria os modelos de negócio existentes, eliminando as receitas e o “ganha-pão” de artistas e dos intermediários da distribuição de conteúdo. De outro lado, replicava-se que a indústria do entretenimento estava morrendo, mas a cultura estava florescendo na mesma medida. O poder tecnológico permitiria ao artista gravar e distribuir suas criações, libertando o artista dos intermediários e permitindo-lhe alcançar diretamente o público consumidor.

Neste processo, as novas possibilidades tecnológicas iluminaram as tensões entre direitos autorais e a liberdade de expressão por outros ângulos, ressaltando aspectos até então obscurecidos. Lawrence Lessig apontou a emergência da cultura do remix (veja este filme). Yochai Benkler discorreu em seu livro The Wealth of Networks sobre a natureza econômica da informação, explicando que a informação não é apenas o output (resultado) de um processo produtivo, mas também o input (insumo) para a criação de novos conhecimentos, novos bens culturais. A cultura somente poderia proliferar e mover-se adiante, portanto, se certos usos do caldo cultural em que estamos inseridos fossem possíveis.

Foram as palavras de Neil Netanel, entretanto, que melhor definiram o problema: para o autor, existiria um verdadeiro “paradoxo do direito autoral“. Isso porque as regras de proteção autoral ao mesmo tempo incentivam e limitam a criação de novas obras. Incentivam na medida em que permitem aos autores obter um ganho econômico a partir do trabalho investido nas suas criações. Neste caso, o direito autoral seria o motor da liberdade de expressão. Por outro lado, a proteção autoral encareceria o acesso e a incorporação de obras protegidas em novas criações, restringindo (de maneira geral) o processo criativo.

Obviamente, a existência desta tensão ou conflito não foi objeto de consenso (viva o dissenso). No passado, chegou-se a argumentar que tal conflito não existiria, porque o direito autoral protegeria apenas a expressão de uma ideia (sua materialização em uma frase, áudio, imagem, etc…). Entretanto, como meras ideias não podem ser protegidas nas legislações autorais, a livre expressão estaria assegurada. Esta posição foi posteriormente criticada por ignorar aspectos importantes do debate, como a necessidade de valer-se das expressões (e não apenas das ideias), para promover o embate de opiniões e pontos de vista. É por este motivo que diversas legislações admitem a incorporação de expressões para fins de paródia, o uso de trechos de obras preexistentes, ou mesmo o uso e citação de marcas em novas obras, viabilizando atividades criativas como esta.

As tensões entre direito autoral e liberdade de expressão agravaram-se e modificaram-se com a digitalização e a tecnologia. Nos primeiros anos da Internet, muito se discutiu sobre a incorporação de “medidas tecnológicas de proteção”, conhecidas também como DRM, que impediriam a cópia – mesmo de pequenos trechos (autorizada pela lei brasileira) – de conteúdos protegidos. Pouco depois, com o amadurecimento da web 2.0 (em que a produção de conteúdos deslocou-se da plataforma para os usuários), o debate centrou-se na aprovação de regras que permitissem não apenas a remoção de conteúdos ilícitos, mas que também preservassem os intermediários de Internet da responsabilização pelos infração de direitos de autor por parte de seus usuários. Nos EUA, a regra materializou-se no Digital Millennium Copyright Act (17 U.S. Sec. 512 – Limitations on liability relating to material online), estabelecendo um sistema conhecido como notice-and-takedown: um resumo grosseiro do sistema indica que, uma vez notificada sobre a existência de um conteúdo infringente, a plataforma deve agir dentro de suas capacidades para removê-lo para não ser responsabilizada. Na Europa, a Diretiva Europeia sobre comércio eletrônico seguiu por um caminho semelhante (para qualquer tipo de conteúdo ilícito, indo portanto além das violações de direito de autor), sem oferecer os detalhes de como o mecanismos de remoção de conteúdo deveriam funcionar.

Estudiosos e entidades de interesse público que atuam na defesa de direitos online criticam aspectos do sistema de notice-and-takedown, apontando que estas regras incentivam as plataformas a remover qualquer conteúdo reportado, mesmo que não viole direitos, de modo a evitar qualquer risco jurídico. Alguns estudos trazem evidências empíricas deste argumento. Além disso, o sistema também é criticado pela ausência de regras claras e de um devido processo para que os usuários possam se defender de notificações equivocadas.

Esta infraestrutura legal persiste até os dias de hoje e foi mapeada em meu livro Liberdade de Expressão e Direitos Autorais, lançado em 2015 pela Elsevier e disponível hoje pelo Grupo Gen. Entretanto, novos desenvolvimentos tecnológicos e complexidades jurídicas entraram na equação. No campo da tecnologia, destaco a automação de algumas partes do processo de enforcement do direito autoral, que antes era realizada por seres humanos. Dois são os exemplos mais emblemáticos: em primeiro lugar, o uso de softwares para identificar conteúdos apontados como infringentes e reportar às plataformas, permitindo aos detentores de direitos autorais na indústria da música e cinema reportar um número muito maior de conteúdos. O incremento no número de notificações foi correspondido com a automatização também pelas plataformas. Esta realidade foi descrita em estudo de 2016 realizado pela universidade de Berkeley, que analisou milhares de notificações tornadas públicas pelos intermediários.

O segundo exemplo é a utilização de tecnologia pelas plataformas para identificar conteúdos protegidos por direito autoral. O grande exemplo neste caso é a tecnologia do ContentID, criada pelo YouTube para identificar quando um vídeo é replicado em sua plataforma. O objetivo é assegurar a monetização dos autores, mas também evitar que o mesmo conteúdo seja removido e reapareça em outros canais ou por meio de diferentes usuários. A disponibilidade destas tecnologias levou a indústria do entretenimento a pleitear a atualização das regras de notice-and-takedown para incorporar uma lógica de notice-and-staydown. Em outras palavras, bastaria ao detentor de direitos notificar uma única vez a existência de um conteúdo, cabendo às plataformas uma espécie de monitoramento para evitar que tal conteúdo seja repostado. Vale destacar que este tipo de medida de monitoramento foi expressamente rechaçado na União Europeia. O art. 15 da Diretiva sobre Comércio Eletrônico da UE afirma com todas as letras que as plataformas não possuem obrigação de monitorar proativamente o que acontece em suas plataformas. Entretanto, há uma forte pressão para enfraquecer esta provisão em nome de maior proteção dos direitos intelectuais.

Por fim, é importante ressaltar também que há um esforço para encontrar meios alternativos para o enforcement destes direitos. Na Europa, e em especial na Inglaterra, detentores de direitos intelectuais têm pleiteado com sucesso que Tribunais emitam ordens judiciais determinando o bloqueio de websites, especialmente aqueles hospedados exterior, baseando-se em normas domésticas e na Diretiva Relativa ao Respeito dos Direitos de Propriedade Intelectual da Comunidade Europeia. A medida é complementada por tecnologias e serviços de enforcement (veja este exemplo), evidenciando o amadurecimento de uma infraestrutura técnica que vem se desenvolvendo para tornar mais eficiente a remoção conteúdos da Internet. Obviamente, já se fizeram notar críticas quanto aos efeitos colaterais de tais medidas, que podem atingir conteúdos lícitos, limitar a liberdade de expressão e impor custos injustos aos provedores de acesso. Considerando o quão drástico (e potencialmente danoso à livre expressão) é o bloqueio de conteúdos, muitos insurgiram-se apresentado receios quanto à proporcionalidade, cobrando salvaguardas e ritos processuais que limitem ao máximo sua utilização, como a possibilidade de que os usuários de Internet e terceiros possam recorrer quando seus direitos forem afetados, bem como que o bloqueios sejam implementados somente quando não restar qualquer alternativa. Ainda assim, estes desenvolvimentos são preocupantes diante da falta de evidências conclusivas quanto a sua eficácia (veja uma análise mais detalhada sobre bloqueios de websites e aplicações à luz da liberdade de expressão aqui).

Estas (nem tão) breves observações sobre os desenvolvimentos no campo evidenciam que o debate sobre direitos autorais e liberdade de expressão não está resolvido. Pelo contrário, tem se tornado mais complexo e trará desafios imensos para os que se preocupam em promover um ecossistema saudável de comunicação.

Luiz Fernando Marrey Moncau

É fellow no Center for Internet and Society da Stanford Law School, onde também foi pesquisador. Foi coordenador do Centro de Tecnologia e Sociedade (CTS), da FGV DIREITO RIO. Formado pela PUC-SP, mestre e doutorando em Direito Constitucional pela PUC-Rio. Co-autor das pesquisas “O Estado Brasileiro e a Transparência” e “Avaliação de Transparência do Ministério Público” e autor do livro Liberdade de Expressão e Direitos Autorais, publicado em 2015 pela Elsevier. Visite sua página na Stanford Law School: http://cyberlaw.stanford.edu/about/people/luiz-fernando-marrey-moncau