Imagem: Bruno Sartori/YouTube

 “Cloroquina, cloroquina / Cloroquina tem no SUS / Não sei se funciona / Mas a gente deduz”

No vídeo do jornalista Bruno Sartori que tem mais de 600 mil visualizações no YouTube e 500 mil no Instagram – e que circulou muito via WhatsApp – os versos da paródia de Florentina, sucesso de Tiririca lançado em 1996, são cantados por um personagem híbrido, fruto da mistura da cabeça e do corpo do próprio cantor com o rosto do presidente Jair Bolsonaro. Como não é difícil perceber, o vídeo contém uma crítica cáustica ao presidente, defensor da utilização indiscriminada do medicamento no tratamento dos sintomas da covid-19, apesar da inexistência de estudos conclusivos sobre sua eficácia e, até mesmo, de constatações que apontam efeitos colaterais graves, especialmente sobre o coração.

O efeito humorístico do vídeo vem, em grande medida, da incongruência[1], da confusão mental causada pela mistura da música Florentina com o próprio objeto da sátira (Bolsonaro). Se, usualmente, a paródia depende de alusões, de pistas que o humorista dá ao espectador de que ele está fazendo referências a uma obra anterior (por exemplo, os filmes de Austin Powers com a série 007), aqui é impossível que o espectador não perceba qual é a fonte em que bebe a paródia, já que ela está explícita na própria obra nova, que se funde com a anterior.

O vídeo, e sua ampla divulgação, enfureceram apoiadores mais aguerridos do presidente, que chegaram a ameaçar seu criador por meio de mensagens e áudios que demonstravam conhecimento de dados pessoais sensíveis como endereço, número de telefone particular e número do telefone da mãe do videomaker.

Por mais que ocupantes de cargos públicos de liderança (e seus aliados e correligionários) se digam defensores da liberdade de expressão, não é sempre que essa tolerância é posta em prática. Para utilizar um exemplo do outro extremo do espectro político, em 2004 Luiz Inácio Lula da Silva ameaçou expulsar do país o correspondente do New York Times Larry Rohter quando este criticou os hábitos etílicos do ex-presidente.

De todo modo, apesar do vídeo da cloroquina ter sido a obra de Sartori com maior repercussão até agora, ele está longe de ser o primeiro – e o último – a ser produzido pelo humorista, cujas redes sociais são atualizadas semanalmente, sempre comentando de maneira ácida os fatos políticos da vida nacional. Adições recentes incluem, por exemplo, paródia do funk Tudo OK (uma das músicas mais executadas no carnaval deste ano), que critica o decreto presidencial que permite o funcionamento de salões de beleza e academias em meio à pandemia por meio de sua inclusão na lista de serviços essenciais – comunicado por jornalistas ao ex-ministro Nelson Teich durante coletiva de imprensa e que acabou, juntamente com a polêmica sobre o uso da cloroquina, conduzindo a seu pedido de demissão do cargo. Outra montagem bastante popular dialoga com o programa Big Brother Brasil, da Rede Globo, e traz discussão icônica entre duas participantes, cujos rostos são substituídos pelos de Bolsonaro e de seu ex-ministro da Justiça Sérgio Moro.

Algo notável nos vídeos é o faro de Sartori para a utilização de elementos diversos da cultura pop, de hits de verões passados como Tô nem aí (utilizado para comentar o famoso “e daí?” presidencial) a referências que povoam memes já há alguns anos, como a telenovela mexicana A Usurpadora, os seriados Chaves e Chapolin e o próprio Big Brother Brasil.

A criação de todos esses vídeos só foi possível graças à chamada “deep fake” (falsificação profunda, em tradução literal), uma técnica surgida em 2017, inicialmente utilizada para a produção de filmes pornográficos, conforme explicou o próprio Sartori em entrevista ao UOL. São programas de computador que usam técnicas de aprendizado de máquina (machine learning) que permitem a criação de vídeos falsos, graças a imagens de arquivo encontradas na internet. Os programas em questão naturalizam movimentos de rostos de pessoas conhecidas, graças à própria abundância de fotografias e vídeos delas. Com imagens diversas nas quais as pessoas retratadas estão com a boca aberta ou fechada, por exemplo, o programa aprende a mimetizar o movimento da boca se abrindo, de modo cada vez mais natural. Por isso que a falsificação tem um efeito realista de mesclar os movimentos faciais dos personagens dos vídeos originais com os rostos dos políticos satirizados. Em síntese, é isso que permite que Bolsonaro interprete a paródia de Florentina com sincronia entre a música e seus movimentos labiais.

É certo que os vídeos de Sartori têm propósito claramente humorístico e de crítica política, e são identificáveis como tais pelo próprio tom de deboche adotado e pelo resultado algo tosco e não naturalista decorrente da inserção de rostos masculinos em personagens femininas, ou de rostos mais velhos em cabeças mais novas. Noutras palavras, fica evidente a qualquer espectador que não são os próprios políticos criticados os participantes das situações retratadas nos vídeos, já que o resultado é pensado não para disfarçar, mas para ressaltar a colagem de rostos alheios sobre obras sabidamente preexistentes e conhecidas do público[2]. Além de tudo, há um aviso de gatilho sempre presente, que é a hashtag #deepfake.

Diante disso, goste-se ou não dos vídeos, eles parecem, até o momento, abrangidos pela liberdade de expressão, tendo em vista a consideração, pela jurisprudência dos tribunais brasileiros, de fatores como o reconhecimento da obra como claramente humorística[3], a intenção satírica de seu criador (animus jocandi)[4] e, como plus, a contribuição ao debate político, mesmo que por meio da ridicularização dos envolvidos (algo já abordado nesta coluna aqui, aqui, aqui e aqui).

[1] Sobre o papel da incongruência no humor, confiram-se, entre outros: SALIBA, Elias Thomé. Raízes do riso: a representação humorística na história brasileira da belle époque aos primeiros tempos do rádio. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. p. 98; WEEMS, Scott. Ha!: the science of when we laugh and why. New York: Basic Books, 2014. p. 30-31.

[2] A criação de deep fakes naturalistas engloba uma discussão muito maior, mais polêmica e fora dos limites deste artigo.

[3] Ver, por exemplo: Tribunal de Justiça de São Paulo. 2ª Câmara de Direito Privado. Apelação Cível 9154334-73.1999.8.26.0000. Rel. Des. Cezar Peluso, julg. 27/08/2002.

[4] Como, por exemplo, retratado no seguinte precedente: Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. 5ª Câmara Cível. Apelação Cível 0133313-84.2002.8.19.0001. Rel. Des. Des. Cristina Tereza Gaulia, julg. 26/04/2011.