Cultura do debate
A criação do Dissenso.org é uma oportunidade singular para o fortalecimento da cultura do debate e da convivência de ideias conflitantes ou opostas, que se encontram na raiz das práticas democráticas civilizadas.
Na origem, dissenso tem como tronco ancestral a palavra discensus que é sinônimo de discordância, oposição e confronto. Por que não aceitar as diferenças? Por que odiar tanto o outro a ponto de não aceitar que ele possa pensar de outra forma, ver o mundo com lentes diversas? Onde fica, então, a nossa tão celebrada cordialidade? Seria apenas um mito, inspirado nas nossas paixões e pendores pela individualidade que seduziram o autor do clássico Raízes do Brasil, Sérgio Buarque de Holanda?
Uma leitura enriquecedora, nesse sentido, pode ser o Dicionário das Batalhas Brasileira – Dos conflitos com indígenas às guerrilhas políticas urbanas e rurais, de Hernani Donato, que fala de mais de duas mil batalhas travadas pelo Brasil, antes de completar 500 anos. Um povo pacífico brigaria tanto? Outra leitura igualmente ilustrativa é Grande Sertão: Veredas, de João Guimarães Rosas, em que um jagunço esclarecido diz que se Deus voltar a Terra e vier ao sertão que “venha armado”. Exatamente, porque não há lugar para a tolerância.
O Brasil dos dias atuais parece não ser tão diferente da época retratada por Guimarães Rosa. É um campo minado pela intolerância e, claro, não apenas no sertão, mas de norte a sul, do Oiapoque ao Chuí. Grassa a dificuldade de diálogo, essa violência que envenena os espíritos, até dos aparentemente mais pacatos e compreensivos. Além do racismo endêmico e toda ordem de preconceitos contra minorias, são alvos prediletos da ausência de uma cultura de debates a imprensa e os jornalistas. Eles são sempre os culpados, na visão de alguns mais intolerantes, gente instruída ou não, pelos acontecimentos, quando na realidade procuram apenas manter a sociedade bem informada.
Não se pode deixar de observar que o traço distintivo da democracia – e esse é que faz do regime o melhor já criado pelo homem, desde a Grécia Antiga – é a capacidade de conviver com os opostos. E de se enriquecer, dialeticamente, com o dissenso. Estudando a Roma Antiga, Maquiavel disse que a república é um regime tumultuado e isso é por demais positivo na medida em que incentiva a circulação de ideias. Sem essa prática, não há democracia.
No Brasil, temos tido um duro, porém importante, aprendizado das regras democráticas. Ironicamente, fomos colonizados por um país que desconhecia o significado das liberdades políticas. Por isso, enquanto parte da Europa – França e Inglaterra, em especial – viveram todo um ciclo de ideias e utopias políticas, o Brasil viveu encerrado em si e com limitada visão de mundo, cultivando o escravismo. Quer dizer, fechou os olhos para as utopias sociais e, sempre que elas ganharam força, as reprimiu. Reprimiu com crueldade. Como desdobramento, vicejou um pensamento praticamente único e forte que se rompeu pelo vigor dos ventos da liberdade.
Mas a herança atávica se projeta como uma sombra pelos dias atuais e nos mantém prisioneiros de muitos hábitos arcaicos. E nada melhor do que a democracia, com a sua cultura do debate, para ampliar horizontes e vencer resistências. Vivemos tempos de transição. Onde desejamos chegar? Essa é a resposta que só poderemos ter em um ambiente de total liberdade e que propicie o amplo debate.
A linguagem dos valores universais permite que a comunicação rompa barreiras e ultrapasse a comunidade dos que falam a mesma língua, cultuam as mesmas ideias. Permite a troca de visões de mundo, aproxima os homens, trata a vida para além dos preconceitos e conceitos formais.
Assim, o dissenso permite que a discordância, a diferença e a oposição sejam tratadas como fatos comuns da democracia. Pois o discordante, não é um inimigo e, se for, pode muito bem ser combatido com ideias e argumentos, que são bem mais vigorosos que a força. Sobretudo a força dos preconceitos. Dissenso é o contrário de consenso. E este portanto, deve ser perseguido, sem torná-lo no entanto o pensamento único, pois como já dizia o saudoso Nélson Rodrigues: “Toda unanimidade é burra”.