Ilustração: Caio Borges

Muitas vezes políticos, administradores e analistas recorrem à mídia para explicar desdobramentos políticos imprevistos que envolvem a opinião pública. Na maior parte das vezes a mídia aparece como bode expiatório. Quando o discurso político não dá conta de explicar resultados eleitorais, plebiscitários, movimentos sociais, ou manifestações de massa, a cobertura excessivamente igual dos meios de comunicação aparece como responsável.

Outras vezes políticos reconhecem a relevância da participação na mídia para sua comunicação com eleitores e para a definição da opinião pública. No Brasil, o tempo gratuito de campanha na TV tornou-se a moeda de troca mais importante na definição de acordos políticos, deixando projetos, programas e formas de se fazer política em plano secundário.

A tensão entre mídia e política sugere que a política institucional não esgota os fenômenos relativos às leis e aos governos. Benedict Anderson, em livro comentado adiante sugeriu a relevância do advento da imprensa no século XVI para o início do processo de formação dos Estados Nacionais. Como entender as relações entre a mídia e a política hoje, quando os estados nacionais estão em crise?

As relações entre a política institucional e a mídia não são simples ou unívocas, como o discurso político por vezes faz parecer. A ideia nesse espaço é problematizar essas relações no sentido de retirar o debate do registro simplório que demoniza ou glorifica a mídia. As possibilidades de dissenso dependem da pluralidade de meios de comunicação plurais.

Os meios são parte do mundo sobre o qual falam. Sua fala e as imagens que constroem e exibem se relacionam com outros elementos da vida e alteram a situação sobre a qual se manifestam. Nem sempre essas alterações são previsíveis. Em geral elas não são. Há alterações de conjuntura imediata e alterações culturais que ocorrem ao longo do tempo em torno de noções e práticas reiteradas, às vezes no pano de fundo das narrativas. Há imponderáveis que cercam a variação de entendimento possível em torno das mesmas imagens sonoras e em movimento. Há agentes privilegiados em sua capacidade de gerar notícias que repercutem.

Resgatar a relevância da mídia significa olhar criticamente para ela como fator de definição de rumos. Ao contrário, a proposta aqui é reconhecer e escarafunchar os deslocamentos e posicionamentos operados pelos fluxos de imagens e textos na vida contemporânea. Longe de uma fantasmagoria com sentido de falsidade, algo que paira acima ou fora das relações sociais a assombrá-las, como que a disfarçar sua verdadeira natureza, há materialidade nos conteúdos midiáticos e nas estruturas institucionais que os produzem. E o debate político os atravessa.

O caso das relações conflituosas entre o atual presidente dos Estados Unidos e a maior parte dos meios de comunicação de seu país é sintomático para se pensar nos limites do poder da mídia. O caso é perverso, mas situa desafios contemporâneos.

Na semana que passou, Donald Trump se superou ao sugerir que professores se armem para proteger seus alunos de ataques nas escolas. A sugestão, proferida por ocasião da reunião do presidente com parentes e amigos das vítimas do último incidente, ocorrido na Flórida, ganhou as manchetes dos principais órgãos da imprensa mundial. Mais uma vez o presidente norte-americano desempenha com maestria a arte de garantir a repercussão de suas opiniões.

O presidente norte-americano enfrenta a opinião contrária ao convidar os parentes das vítimas para um encontro na Casa Branca, mesmo que a reação contundente desses pais e amigos contradiga um dos pilares de seu o programa, que é a defesa do direito da posse de armas e da indústria armamentista.

Solidariedade não se confunde com concordância. Ao contrário, quem se formou na performance midiática, como o milionário apresentador, sabe que a provocação ao senso comum rende notícia.

O estímulo à penetração das armas nos espaços privilegiados de formação dos cidadãos do futuro, que em outros tempos e contextos poderia ter sido desprezado como non sense, produz manchetes ao redor do mundo. Com a proposta essa figura assumidamente grotesca avança uma fronteira do pensamento na direção das trevas.

O presidente não se cansa de combater a mídia em sua atividade constante no Twitter. Ameaçados pela concorrência das mídias sociais, diversos órgãos de comunicação não deixam de publicizar as declarações heterodoxas do presidente. Os organismos de comunicação como que se esfarinham, sequestrados por dentro, escravos do domínio que o apresentador-empresário-feito político detém sobre a lógica de construção da notícia.

Mesmo que inadvertidamente, ao se colocar não como parte do problema, mas como árbitro, ou agente fiscalizador das ações dos três poderes, a mídia em geral colabora com o desgaste da política institucional, observável em diversas democracias do mundo. Perversamente, o desgaste da legitimidade política leva partidos e políticos a buscar a popularidade de personalidades consagradas na mídia.

O resultado das últimas eleições nos Estados Unidos é interessante porque resulta de uma campanha em que o candidato eleito fez da oposição à mídia um dos eixos de sua campanha. O candidato se posiciona como um insider formado nas artes de transformar a reality em show. Essa tática, em certo sentido reflexiva, funcionou a seu favor.

O comportamento do presidente se impõe. Mesmo discordando e desgostando, os diversos órgãos da mídia veiculam cada fala e cada ação de uma figura que se constrói graças à provocação a noções estabelecidas na cultura pós-colonial que fundou a nação americana com base nos ideais anti-aristocráticos e anti-monarquistas da revolução francesa.

Eleito, o presidente consegue se manter continuamente em pauta graças à manipulação hábil de seu Twitter pessoal e à atitude demolidora de valores de liberdade, igualdade e fraternidade que animaram a invenção dos Estados Unidos da América, com base nos ideais da revolução francesa que aconteceria 13 anos depois, adaptados para um projeto federativo que teria ao longo dos anos de enfrentar o preconceito e a discriminação que lhe corroem as entranhas.

A efetividade dessa estratégia antipopular conta com o desgaste provocado pelo aumento das desigualdades naquele país e no mundo, pelos conflitos que expulsam populações inteiras de seus lugares, e pela instabilidade que ameaça reduzir o discurso democrático a retórica. Como fugir da performance de alguém que sequestra o poder de definir o que será noticiado? Talvez alterando o conceito de notícia?

Em seu livro Comunidades imaginadas: reflexões sobre a origem e difusão do nacionalismo, o historiador Benedict Anderson relaciona o surgimento dos Estados nacionais à imprensa diária e às publicações em línguas à época vernaculares.

Uma das grandes contribuições de seu trabalho é a desmistificação do caráter essencial das nações. As fronteiras são historicamente contingentes e se definem e redefinem de acordo com relações de poder que se realizam de maneiras nem sempre previsíveis.

No feudalismo, a aristocracia europeia e a igreja católica dominavam em latim, em escritos acessíveis somente a uma elite diminuta. Havia poucas cópias de publicações. Os livros eram raros. As bibliotecas, templos sagrados, como sugere a Babel de Jorge Luis Borges, ou o popular romance de suspense de Umberto Eco.

O surgimento da imprensa e a publicação de livros em diversas línguas, contribuiu para a possibilidade de imaginar comunidades para além dos domínios feudais. O ato de ler um mesmo jornal, em uma determinada língua, em uma região geográfica delimitada favoreceu a imaginação de comunidades que não se reúnem fisicamente em assembleia, como imaginava Rousseau, mas que existem mesmo assim, no plano virtual.

Embora o centro do trabalho de Anderson não seja as relações entre mídia e política, creio que seu ensaio é sugestivo para se pensar como sem imaginação não há realização. Os jornais e os livros participaram da construção da nação ao propiciar repertórios e práticas de leitura compartilhada entre pessoas de uma mesma região. A imprensa está na raiz dos Estados Nacionais.

Já no século XIX a emergência dos meios técnicos, para usar os termos de Walther Benjamin, a fotografia, o rádio, o cinema, participam do que se convencionou denominar Invenção da Vida Moderna, título de uma coletânea de textos que abordam as relações especificamente entre o cinema e a vida voltada para o estímulo a experiências de superação dos limites do corpo humano na travessia de espaços geográficos ou temporais. Embora tenha sido imaginada no mesmo processo de invenções que gerou os primeiros meios técnicos, a televisão só se tornou disponível na metade do século XX, quando a ufania com os primeiros meios havia se transformado em crítica e medo.

O início do século XXI sob a égide do digital coloca novos desafios. O caráter binário abstrato da composição digital composta de infinitos arranjos, ou matrizes, de 0 e 1 talvez esteja na raiz da bipolaridade crescente. Fluxos transnacionais abalam a legitimidade das fronteiras e dos governos nacionais. A pergunta hoje é que comunidades seremos capazes de imaginar.

Esther Império Hamburger

Profa. Titular do Dept de Cinema, Rádio e Televisão da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo. PhD em Antropologia pela Universidade de Chicago. Foi Visiting Scholar no Center for Latin American Studies da University de Harvard, Visiting Professor no Center for Latin American Studies da Universidade de Michigan e fez pós doutoramento na Universidade do Texas, Austin. Fez graduação e mestrado em sociologia na FFLCH da USP. Atualmente é Coordenadora do Laboratório de Investigação e Crítica Audiovisual (LAICA) e chair da Rede UNITWIN da UNESCO e UNAOC em Media and Information Literacy and Intercultural Dialogue. Autora do livro "O Brasil antenado: a sociedade da novela". Escreveu regularmente para a Folha de S.Paulo.