Ilustração: Paola Hiroki

Abro o celular para verificar as notificações e me deparo com a seguinte mensagem no Messenger: “Oi filhão, Estou vendo que você vai a um ato hoje no final da tarde para lutar por aquilo que acha justo. Se cuide, tá? Beijos”. Por um instante estranhei a mensagem. Eu não costumo conversar com meus pais sobre as manifestações de que participo para evitar preocupações desnecessárias. Essa em particular era contra a PEC do teto, um tema com o qual me envolvi muito em 2016. Não conheço a fundo as posições do meu pai em relação ao tema, mas acredito que, oposto a mim, ele torcia para a aprovação da emenda — a mensagem indica isso no uso da terceira pessoa em “lutar por aquilo que acha justo”. Por isso, apesar do tema ter ocupado grande parte do meu tempo e energia durante os meses de julho e agosto daquele ano, nos almoços de família eu não o mencionava preferindo falar do trabalho ou de futebol. Esse tipo de assunto era tão distante do meu círculo familiar que dois anos antes, quando eu havia sido detido junto com outras 261 pessoas em uma operação abusiva da polícia militar durante um protesto contra os gastos com a Copa do Mundo, me ocorreu ligar para eles antes que a notícia chegasse por outros meios. Não é tanto que meus pais não conheciam essa faceta da minha identidade, mas como o consenso operacional que estabelecemos nos almoços de família incluia evitar esses temas, eu temia que poderia haver algum tipo de choque com a notícia. Daí meu estranhamento quando recebi a mensagem do meu pai naquele dia alertando para que eu me cuidasse. Ele recentemente criara um perfil no Facebook e eu ainda não tinha avaliado as consequências disso.

A situação narrada no primeiro parágrafo ilustra o que danah boyd (sim é com letra minúscula mesmo) chama de colapso contextual. Em seus termos, a identidade social que eu buscava apresentar para meus pais por meio de minha performance, no contexto dos almoços de família, não incluía determinada faceta da minha identidade interna. Provavelmente na interação social com outros indivíduos em outros cenários, outro tipo de negociação era performado exibindo outras facetas da minha identidade. Já nas redes sociais, como o tipo de comunicação predominante é um-para-muitos, as fronteiras entre as diferentes audiências (alunos, colegas de trabalho, família, amigos, parceiros de militância etc.) são planificadas em um único grupo homogêneo, tornando difícil para um usuário manter distintas apresentações de si para diferentes plateias — em sites como Facebook é possível fragmentar a audiência, mas esse tipo de recurso é usado por uma fração muito pequena dos usuários. Além disso, a comunicação nesses sites tipicamente é mediada por algoritmos que selecionam quais publicações terão destaque para que usuários. Dessa forma, quando atualizamos nosso status não sabemos quem receberá o conteúdo ou seja, nos termos de Goffman, performamos para uma audiência invisível.

Vivemos um tempo de intensa polarização da esfera pública cujas raízes, estou convencido, são sociais. Não obstante, julgo relevante a pergunta sobre o papel da tecnologia em reforçar ou atenuar esse processo. Os debates acadêmicos nesse campo têm dado ênfase para o fenômeno do filtro bolha. Correndo o risco de simplificar excessivamente o argumento, a ideia seria a seguinte. Os algoritmos de curadoria, cujo objetivo seria filtrar o conteúdo nas redes sociais, nos sites de busca, nos sites de acesso à cultura (música, filmes, livros etc.), selecionando ou dando maior destaque ao conteúdo mais desejado pelo usuário, criariam uma espécie de isolamento intelectual. O usuário, não estando exposto ao contraditório, tenderia a se fechar em uma bolha e se relacionar apenas com aqueles que pensam de maneira similar a si próprio. A meu ver é preciso ajustar esse argumento para dar conta do fenômeno do colapso contextual. Para me manter no exemplo, minha relação com meu pai não se alterou porque a curadoria de um algoritmo o isolou da diversidade do mundo. De certa forma o que ocorreu foi o contrário, ele agora tem mais familiaridade com determinada faceta da minha identidade. Assim, talvez a pergunta correta não seja a quais conteúdos estamos nos expondo no ambiente digital, mas como a arquitetura das plataformas modela nossa interação social.

Nessa direção Bernie Hogan argumenta que a quantidade e diversidade de relações que mantemos nesses sites é impossível de manejar e, na prática, consideramos apenas dois grupos quando expomos uma faceta de nossa identidade nessas plataformas: 1) aqueles para os quais gostaríamos de apresentá-la e 2) aqueles que imaginamos que estranhariam conhecê-la. Ele sugere que os usuários buscariam um menor denominador comum do que é normativamente aceito como saída para esse conflito. A hipótese de Hogan não é o que observo e há indícios empíricos de que ela não se sustenta.

Mais próximo do que observo é a seguinte hipótese, que pode ajudar a iluminar a questão do isolamento e da polarização. Exibimos uma faceta de nossa identidade no site e delegamos para o algoritmo da plataforma que nossa mensagem chegue principalmente àqueles que desejam conhecê-la (o grupo 1 de Hogan). Por conta dessa curadoria recebemos proporcionalmente mais retornos positivos do que negativos e ajustamos nossa performance de acordo. Assim, cada vez mais consideramos o grupo 1 quando produzimos conteúdo e menos o grupo 2. Quando já estamos à vontade perante nossa audiência invisível, eventualmente somos surpreendidos pelo comentário de alguém que já não mais considerávamos. Essa situação gera um choque e eventualmente culmina com um “unfriend”.