Ilustração: Paola Hiroki

Nos últimos anos, o governo espanhol tem se defrontado com pressões internas e internacionais para abertura dos arquivos da ditadura franquista. Arquivos vivos, de experiências que seguem na memória da sociedade espanhola, mas que alguns teimam em negar.

Costumeiramente, a expressão arquivo-morto é utilizada para designar documentos depositados em caixas-arquivo, sem funcionalidade, que esperam apenas os prazos precaucionais ou prescricionais para serem destruídos. Esta definição, segundo a Arquivística é equivocada – arquivo-morto designa, em realidade, um depósito onde os documentos são encaminhados desorganizadamente e lá permanecem inacessíveis e sem identificação.

Quando se fala sobre os arquivos da ditadura franquista, é imprescindível fazer referência à repressão propriamente dita ou, ao menos, aos sistemas de informações, já que foi essa estrutura que produziu tais documentos. Mesmo que muitas ações da ditadura estivessem pautadas pela clandestinidade – o que poderia significar a inexistência de registros documentais – esses regimes possuíram estruturas hierárquicas, com uma organização burocrático-militar cuja prática implicava criar registros, redigir informes, organizar prontuários e arquivos. Manter e alimentar esses registros, acumulá-los e ordená-los fazia parte das tarefas habituais dos regimes autoritários, como lembra a historiadora argentina Elizabeth Jelín.

Os “arquivos da repressão” possuem uma série de especificidades quanto a sua existência, organização, preservação e difusão, questões que extrapolam os limites da arquivística e atingem os âmbitos ético e político. Esses documentos afetam diretamente a sociedade onde foram recuperados (Estados, agentes da repressão, vítimas, familiares, organizações de direitos humanos, Forças Armadas), principalmente por seus protagonistas ainda estarem vivos e ser um fato do passado recente dessas sociedades. Isso traz à tona a discussão sobre a privacidade e a preservação da intimidade das pessoas. Além disso, esses arquivos possuem, além do valor histórico e judicial, um valor de memória e um valor de identidade. Esses arquivos possuem uma especificidade intrínseca, chamada por alguns pesquisadores de “efeito bumerangue”: os documentos que conformam os acervos provenientes das forças repressivas servem no presente para uma atividade diretamente oposta a sua origem: produzidos para coordenar as ações repressivas, agora podem ser usados para compensar às vítimas pelas arbitrariedades e violações a seus direitos humanos. Tais arquivos, que foram absolutamente necessários para o exercício das atividades repressivas, se convertem no novo regime em um instrumento social insubstituível para conformar as novas relações sociais, de acordo com Antonio González Quintana.

Os arquivos repressivos que ainda não estão disponíveis ao público devem ser abertos para recuperar elementos para a afirmação da democracia, principalmente os valores como o da verdade e da justiça, além da promoção da democratização da informação. Devem ser considerados como legado para as novas gerações, já que são patrimônios da humanidade.

A abertura dos arquivos da ditadura franquista é uma medida fundamental para assegurar e consolidar os regimes democráticos que sucederam as ditaduras de segurança nacional. Esses documentos podem ser utilizados como elementos para a reafirmação da democracia, principalmente no que diz respeito aos direitos, tanto coletivos quanto individuais, que deles advém: o direito à conservação desses fundos, pela história e pela memória; o direito a integridade da memória dos povos; o direito à verdade, ou, no mínimo, a informações sobre a atuação do regime anterior; o direito a conhecer os responsáveis pelos crimes contra os direitos humanos, que deve ser cumprido independentemente se a decisão for ou não de sua responsabilização. Fora esses direitos coletivos, tem-se os seguintes direitos individuais: direito a conhecer o paradeiro dos familiares desaparecidos no período repressivo; direito ao conhecimento dos dados existentes sobre qualquer pessoa nos arquivos repressivos (habeas data); direito à investigação histórica e científica; direito à anistia para presos e perseguidos políticos; direito à compensação e reparação de danos sofridos pelas vítimas da repressão; direito à restituição de bens confiscados.

Cada vez que se faz referência à ditadura franquista, lembra-se que os arquivos do regime ainda se encontram indisponíveis. Prova de que, mais do que nunca, estes são arquivos vivos. O que fundamenta o medo em disponibilizá-los?

Caroline Silveira Bauer

Professora do curso de História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, onde atua na graduação e na pós-graduação. Entre 2011 e 2013, trabalhou como consultora da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República. É autora de diversas obras sobre a temática da ditadura civil-militar brasileira, integrando grupos de pesquisa e investigação nacionais e internacionais.