Ainda sobre o desacato
Ao mesmo tempo em que publicava minha última coluna neste espaço exaltando a recente decisão da 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça que declarara a incompatibilidade do crime de desacato com o artigo 13 do Pacto de São José da Costa Rica, a 3ª Seção do mesmo Tribunal Superior[1] revisitava a questão atinente à interpretação do artigo 331 do Código Penal à luz da Convenção Americana de Direitos Humanos, no julgamento do habeas corpus nº 379269.
Contrariando as premissas assentadas no já comentado julgamento do Recurso Especial nº1.640.084/SP, a Seção decidiu, em 24 de maio último, por maioria, que tudo segue como antes do acórdão de dezembro de 2016: desacato ainda é crime e, sim, a reputação dos integrantes da Administração Pública demanda diferenciada tutela, a justificar a manutenção do tipo penal no ordenamento jurídico interno.
Diante de decisões tão diametralmente opostas, não se poderia deixar de lamentar o rápido retrocesso, assim como não se poderia deixar revisitar aqui também a discussão, dado o inegável reflexo que a decisão de maio produzirá nos tribunais de todo o Brasil.
Segundo o Ministro Antonio Saldanha Palheiro, que suscitou o entendimento divergente[2], para além de as decisões da Comissão Interamericana de Direitos Humanos não serem dotadas de força de vinculante[3], a Corte Interamericana de Direitos Humanos já decidira que a liberdade de expressão não é um direito absoluto, mas passível de limitação por força de lei e para assegurar o respeito aos direitos e à reputação das demais pessoas, conforme prevê o artigo 13.2 do Pacto de São José da Costa Rica.
Partindo dessas premissas, afirmou-se inexistir qualquer incompatibilidade entre o artigo 331 do Código Penal e o texto da Convenção, e que a limitação à liberdade de expressão promovida pelo crime de desacato, além de atender ao princípio da legalidade, “revela-se essencial, proporcional e idônea a resguardar a moral pública e, consequentemente, a própria ordem pública”.
A questão de fundo que se coloca diz, portanto, com uma suposta necessidade de proteção penal da moral pública, que, sob a ótica do voto vencedor, seria legítima e condicionaria o regular exercício da função pública. Sob essa perspectiva, a certeza da atuação do direito penal diante de qualquer ofensa àquele que desempenha função pública seria imprescindível para garantir a própria estabilidade das instituições, justificando a criminalização das ofensas por meio de tipo penal distinto dos crimes contra a honra, que se prestam à proteção da honra pessoal.
A decisão da 3ª Seção do Superior Tribunal de Justiça revela um claro desequilíbrio de forças entre o Estado e os indivíduos. Com a chancela do Poder Judiciário, prevalece a tutela à autoridade estatal em detrimento da proteção aos direitos dos cidadãos comuns, quando a lógica democrática deveria fazer pesar a balança da forma inversa.
É inegável o prejuízo aos direitos individuais, em especial à liberdade de expressão.
O Ministro Rogério Schietti Cruz, que acompanhou a divergência, argumentou inexistir uma similitude fática entre as situações discutidas nos precedentes da Corte Interamericana de Direitos Humanos acerca do crime de desacato em outros países e aquelas situações que corriqueiramente dão ensejo aos processos criminais por desacato por aqui. Segundo o Ministro, o desacato não se tipifica, em regra, pela expressão da opinião ou da crítica aos agentes estatais, mas por ofensas proferidas em entreveros que ocorrem em abordagens policiais, cumprimento de mandados judiciais, audiências e atendimentos em repartições públicas, de modo que a aplicação do artigo 331 não causaria limitação à liberdade de expressão.
Não há como concordar com uma análise tão reducionista da questão. Tal como prevista no nosso Código Penal, a figura do desacato é imprecisa (“Desacatar funcionário público no exercício da função ou em razão dela. Pena – detenção, de seis meses a dois anos, ou multa”), o que faz que na moldura do artigo 331 caiba toda sorte de conduta reputada ofensiva, a depender da suscetibilidade da vítima e do arbítrio do julgador.
Do xingamento à manifestação legítima (embora desagradável) da opinião, tudo cabe no ali, por ausência de definição precisa.
A manutenção do crime gera insegurança jurídica e frequentes abusos de poder. Mais que isso, é inegável que a ameaça da persecução criminal por desacato funciona, como já dito no artigo anterior, como verdadeiro freio para que cidadãos comuns manifestem suas críticas a quem exerce a função pública.
Lamenta-se, portanto, que a decisão da 3ª Seção do Superior Tribunal de Justiça tenha trilhado para a jurisprudência caminho que vai na contramão da tolerância e da promoção do diálogo entre os indivíduos e o Estado.
Resta agora esperar que se promova a revogação do artigo 331 do Código Penal em nível legislativo.
[1] Composta pelos Ministros da 5ª e da 6ª Turma daquele Tribunal, que têm competência criminal.
[2] O relator sorteado, Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, decidia conforme o precedente da 5ª Turma de dezembro passado.
[3] Tais decisões haviam sido utilizadas como fundamento para o julgamento do Recurso Especial nº 1.640.084/SP pela 5ª Turma. Segundo o Ministro Antonio Saldanha Palheiro, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, diferentemente da Corte Interamericana de Direitos Humanos, não é dotada de função jurisdicional, razão pela qual suas decisões não vinculam os Estados signatários da Convenção, constituindo simples recomendações de caráter moral.