A Democracia precisa de filtros
Desde o surgimento da Internet 2.0, ganhou asas a expectativa de que a nova tecnologia permitiria a superação dos limites da democracia representativa. Esta se desenvolveu a partir do final do século 19, baseada, de um lado, na ampliação do direito de voto e da proteção das eleições contra fraudes e, de outro, no fortalecimento das instituições responsáveis pela mediação entre as preferências da sociedade e as decisões do governo, nos períodos entre uma eleição e outra. Três instituições em especial: os partidos, o parlamento e a imprensa.
No horizonte utópico da Internet, não apenas os cidadãos poderiam expressar as suas preferências individuais interferindo diretamente no processo decisório, sem a mediação dos partidos e do parlamento, como também a opinião pública poderia se formar sem a mediação dos veículos de imprensa, pela comunicação livre e horizontal entre os cidadãos. Nesse horizonte, que os mais otimistas imaginavam estar ao alcance da mão, a democracia representativa seria superada por uma democracia ao mesmo tempo direta e deliberativa. A Internet viabilizaria a atualização do ideal democrático grego em sociedades complexas, sem as restrições à cidadania que caracterizaram o seu exercício na Grécia Antiga, onde só homens livres eram considerados cidadãos.
Passadas quase duas décadas, constata-se o quanto havia de otimismo ingênuo nessa expectativa. Para isso, não é preciso concordar com Umberto Eco, autor da célebre invectiva segundo a qual a Internet se presta apenas a dar “voz aos idiotas”, nem ignorar experiências interessantes e promissoras com o uso de novas tecnologias de informação e comunicação visando ampliar a voz e a vez dos cidadãos nas decisões do sistema político, como no caso da elaboração de uma nova constituição na Islândia entre 2010 e 2012.
Basta ter olhos para ver. A qualidade do debate público se deteriorou mais e mais à medida que se expandiu o alcance das chamadas mídias sociais, com suas câmaras de eco onde muitos falam, mas ninguém escuta nem se interessa por compreender as razões do outro. Nesse contexto, plebiscitos e referendos, longe de serem mecanismos de aproximação entre governantes e governados, servem de instrumentos para a manipulação deliberada do eleitorado por elites políticas irresponsáveis, quando não autoritárias. Em vez de atualizar contemporaneamente o ideal grego de democracia, a Internet até aqui produziu a deterioração da esfera pública como espaço do embate argumentativo racional e criou um ecossistema favorável a líderes demagogos e populistas cuja força está justamente na capacidade de apelar diretamente a sentimentos primários diante de dilemas políticos complexos.
Claro que esse quadro desalentador não se explica exclusivamente pela disseminação das mídias sociais. Ele tem causas socioeconômicas e políticas. Mas a inovação tecnológica recente nas comunicações agrava as tendências presentes no mundo offline. Se de um lado podem democratizar o poder de mídia e pluralizar o universo de opiniões relevantes, de outro as novas tecnologias ameaçam a sobrevivência da imprensa enquanto instituição especializadas em apurar fatos e transformá-los em notícias e, por meio de seus editoriais e articulistas, oferecer ao público “templates” para a interpretação do mundo.
Sabemos que uma imprensa pluralista é parte integrante de uma sociedade aberta e democrática. Imaginar que ela possa ser substituída com vantagens por uma multiplicidade de blogs supostamente independentes é um equívoco. Primeiro porque o mundo digital também reflete estruturas de poder existentes na sociedade, e não raro de forma mais opaca do que no mundo da imprensa institucional. Segundo, mesmo quando são de fato independentes, os blogs carecem de estruturas próprias para a apuração e produção das notícias. São antes espaços de opinião, voltados a quem compartilha as crenças do autor. Sua confiabilidade depende menos da veracidade do que nele se publica e mais do fortalecimento de laços de afinidade ideológica.
Os partidos e os parlamentos são instituições intermediárias que historicamente se mostraram essenciais ao funcionamento das democracias representativas em sociedades complexas. Eles também estão colocados em xeque pelas novas tecnologias de comunicação. O descrédito crescente dessas instituições, mesmo nas democracias mais avançadas, não se explica pelas novas tecnologias. Mas estas o reforçam.
Reforçam o descrédito dos partidos e dos parlamentos porque fomentam a ideia de que essas instituições, além de alheias à vontade do povo, seriam inúteis. As novas tecnologias supostamente permitiriam dispensá-las e substituí-las pelo voto direto de cada cidadão na escolha de opções na maioria, senão na totalidade, das decisões governamentais. Essa ideia é uma perigosa ilusão. Na verdade, apenas a ínfima minoria dessas decisões se presta a decisões em termos de sim ou não.
Se de um lado fomentam essa ilusão, de outro as novas tecnologias facilitam o apelo direto dos líderes políticos aos eleitores, por cima dos partidos e do parlamento. Num ambiente de desmoralização das instituições intermediárias – que, volto a dizer, não é causada, mas é reforçada por elas – as novas tecnologias criam vantagens competitivas para demagogos e populistas, que se valem da ficção do contato direto com o povo não para tornar a democracia mais “autêntica”, mas para debilitar as instituições que existem para colocar freios à vontade individual do governo eleito.
Está mais do que na hora de reavaliarmos o potencial democrático das novas tecnologias de comunicação com mais realismo e parcimônia. Esse potencial existe. Mas é preciso empregá-lo com sabedoria, experimentando e aprendendo, para aprimorar, nunca para dispensar, filtros essenciais à democracia.