A descriminalização do desacato
Em dezembro passado, o Superior Tribunal de Justiça promoveu importante incremento à proteção da liberdade de expressão no Brasil. A 5ª Turma do Tribunal, ao julgar o Recurso Especial nº1.640.084/SP, interposto pela Defensoria Pública do Estado de São Paulo, realizou controle de convencionalidade do artigo 331 do Código Penal e reconheceu, no caso concreto, a incompatibilidade do crime de desacato com o artigo 13 do Pacto de São José da Costa Rica (Convenção Americana de Direitos Humanos) para absolver o réu, antes condenado à pena de oito meses e cinco dias de detenção por ter desacatado os policiais militares responsáveis por sua prisão.
Desacatar (leia-se, ofender, desrespeitar) funcionário público no exercício da função ou em razão dela é a conduta incriminada pelo Código Penal. Além de representar claro resquício do autoritarismo do legislador de 1940 – que conferiu diferenciada proteção à honra e à reputação dos agentes estatais em comparação com os cidadãos comuns –, tal figura penal autoriza toda sorte de abusos, pois faz depender do sentimento pessoal de cada funcionário público em relação às palavras e gestos que lhe são dirigidos a caracterização do delito.
A previsão do Código Penal é anacrônica frente à proteção conferida à liberdade de expressão tanto pela Constituição Federal de 1988, quanto pelo Pacto de São José da Costa Rica[1], foi o que declarou o Superior Tribunal de Justiça.
A decisão alinha-se, ainda, à Declaração de Princípios sobre Liberdade de Expressão aprovada pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos[2] e tem o inquestionável mérito de reconhecer que, em um Estado Democrático de Direito, além não se justificar o tratamento diferenciado à honra dos funcionários públicos, estes, pelo exercício de função pública, tornam-se naturalmente sujeitos a maior escrutínio da sociedade e, consequentemente, à crítica.
Sob essa premissa, o Superior Tribunal de Justiça reconheceu também que a manutenção do tipo penal de desacato no ordenamento jurídico inverte a lógica da democracia, porquanto a ameaça da persecução criminal funciona como freio à livre manifestação da opinião e da crítica dirigida àqueles que desempenham função pública.
A descriminalização formal da conduta apresenta-se necessária e urgente, se consideradas as quase oito décadas que nos separam da entrada em vigor do Código Penal e a tendência observada nas instâncias inferiores de se decidir na contramão das premissas assentadas pelo Superior Tribunal de Justiça no recente julgamento.
O exercício de função pública, por natureza, impõe aos agentes estatais maior tolerância às críticas que lhes são dirigidas. Impõe ao Judiciário, pelo mesmíssimo motivo, maior cautela na subsunção de condutas não apenas ao tipo penal de desacato, como também aos modelos legais de calúnia, injúria e difamação contra funcionários públicos.
A subsistência desses tipos penais dá margem, contudo, a uma inevitável e indesejável dose de subjetivismo (e corporativismo) na análise dos conteúdos que podem constituir ofensas penalmente relevantes. A depender da suscetibilidade da vítima e do arbítrio do julgador, a crítica legitima (porém desagradável) transforma-se em crime, ensejando a repressão do autor.
Fatos recentes divulgados pela imprensa dão contorno à afirmação acima. Com alguma frequência são noticiadas investigações criminais e ações penais ajuizadas em face de blogueiros e jornalistas que dirigem críticas públicas a agentes estatais.
Sem querer adentrar o exame sobre o mérito dessas imputações, a simples existência dos procedimentos criminais noticiados dá a dimensão do problema: é muito tênue a linha que separa a crítica do crime, o que acarreta, não raro, a repressão penal de manifestações legítimas, embora desagradáveis, do pensamento, com o consequente enfraquecimento do debate sobre as questões públicas.
Enquanto não se promove, em nível legislativo, a abolitio criminis, a decisão recente do Superior Tribunal de Justiça pode e deve ser usada como parâmetro pelos demais tribunais e juízos de primeiro grau, em conformidade com o compromisso firmado pelo Brasil, no Pacto de São José da Costa Rica, de promover internamente a defesa dos direitos humanos.
Notas:
[1] Artigo 13. Liberdade de pensamento e de expressão
1. Toda pessoa tem direito à liberdade de pensamento e de expressão. Esse direito compreende a liberdade de buscar, receber e difundir informações e ideias de toda natureza, sem consideração de fronteiras, verbalmente ou por escrito, ou em forma impressa ou artística, ou por qualquer outro processo de sua escolha.
2. O exercício do direito previsto no inciso precedente não pode estar sujeito a censura prévia, mas a responsabilidades ulteriores, que devem ser expressamente fixadas pela lei e ser necessárias para assegurar:
a. o respeito aos direitos ou à reputação das demais pessoas; ou
b. a proteção da segurança nacional, da ordem pública, ou da saúde ou da moral públicas.
3. Não se pode restringir o direito de expressão por vias ou meios indiretos, tais como o abuso de controles oficiais ou particulares de papel de imprensa, de frequências radioelétricas ou de equipamentos e aparelhos usados na difusão de informação, nem por quaisquer outros meios destinados a obstar a comunicação e a circulação de ideias e opiniões.
4. A lei pode submeter os espetáculos públicos a censura prévia, com o objetivo exclusivo de regular o acesso a eles, para proteção moral da infância e da adolescência, sem prejuízo do disposto no inciso 2.
5. A lei deve proibir toda propaganda a favor da guerra, bem como toda apologia ao ódio nacional, racial ou religioso que constitua incitação à discriminação, à hostilidade, ao crime ou à violência.
[2] Cujo princípio 11 estatuiu que “os funcionários públicos estão sujeitos a maior controle por parte da sociedade” e que “as leis que punem a manifestação ofensiva dirigida a funcionários públicos, geralmente conhecidas como ‘leis de desacato’, atentam contra a liberdade de expressão”.