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Nossa Constituição não é fácil de ser interpretada. Exemplo dessa verdade é justamente o texto que consagra a garantia à liberdade de expressão, mas ao mesmo tempo veda o anonimato. Isso porque não é difícil imaginar situações em que, para o sujeito se expressar livremente, ele precise sentir sua identidade protegida.

Com a internet, não há mais monopólio da criação ou geração de informação/expressão pelos veículos tradicionais de comunicação (jornais, revistas, portais) com controle editorial do que é publicado por seus contratados; no campo artístico, acabou também o monopólio de criação por grandes cadeias de TV ou de rádio e o controle da performance dos artistas que contratam.

Com as mídias sociais, todo mundo se sente mais livre para criar, gravar, transmitir, compartilhar ideias, opiniões e expressões em blogs, vídeos, fotos, da maneira mais ampla que já se imaginou. O compartilhamento de informações está nas mãos das pessoas, em seus “smartphones” e “tablets” e outros dispositivos conectados à internet, independentemente de sua origem ou qualificação, nacionalidade ou profissão. Todos que quiserem podem se manifestar em plataformas disponíveis e não sujeitas a controle editorial, independentemente de aprovação. Basta que concordem com as regras de utilização de cada plataforma (incluindo cumprir leis sobre conteúdos proibidos) e com a retenção obrigatória de alguns de seus dados.

A verdade é que, desde que foi concebida como garantia dos cidadãos, a liberdade de expressão nunca conheceu maior amplitude do que agora. A real possibilidade de manifestação sem vínculo com veículos de comunicação e sem controle prévio está por todos os cantos do globo – pode vir de uma blogueira na Tunísia, que com seus escritos ajudou a derrubar a ditadura em seu país e acender a pólvora da Primavera Árabe, pode vir de um repórter independente num distrito rural do norte da Índia distribuindo notícias locais por meio do Whatsapp, ou de qualquer outro lugar.

É com a revolução digital e os infinitos registros e compartilhamentos a cada segundo que o sistema mundial de proteção à liberdade de expressão está sendo e será verdadeiramente testado.

No Brasil, ainda temos que lidar com a questão precedente da vedação genérica ao anonimato, no mesmo dispositivo que consagrou a liberdade de expressão, aplicando-se em tese a todo tipo de manifestação do pensamento, inclusive as artísticas e políticas.

Claramente, a Constituição de 1988 vedou o anonimato porque previu a responsabilização por dano à honra/imagem (apenas daqueles poucos indivíduos lesados) no mesmo artigo 5o em que estabeleceu a garantia fundamental à liberdade de expressão (que é de natureza difusa e pertence a todos indistintamente). Ou seja, para permitir o eventual exercício do direito de reparação de alguns, limitou-se genericamente o direito à livre manifestação de pensamento de todos.

A vedação genérica em nível constitucional causa uma série de perplexidades, sem que o conceito de anonimato tenha sido verdadeiramente “testado” em nossos tribunais nos quase 30 anos de vigência da Constituição; também, pudera, antes da explosão da internet isso era menos necessário, já que jornalistas, escritores e artistas estavam antes claramente identificados pelos veículos em que trabalhavam.

As perguntas se avolumam. O anonimato na internet é a total omissão de autoria ou apenas a impossibilidade de identificar o autor? Anonimato é não ser identificável de plano? Qual a regra para pseudônimos, como os adotados pela escritora do momento, Elena Ferrante ou o grafiteiro Banksy? Os usuários que se identificam por outros nomes que não o real na internet estariam a usar pseudônimos? Em sendo anônima, a expressão é automaticamente ilegal e deve, portanto, ser suprimida?

As questões não são meramente retóricas – elas se colocam todos os dias, principalmente perante o discurso político na internet.

Em muitas situações, o Estado de Direito verdadeiramente democrático deve proteger a possibilidade de anonimato e não tachar simplesmente a expressão anônima de inconstitucional. Tanto assim que diversos países de tradição democrática não citam a proibição ao anonimato em suas legislações, e a possibilidade deste ser usado como proteção em certos casos é defendida por organizações internacionais. A Suprema Corte Americana já afirmou que “o anonimato é um escudo contra a tirania da maioria” e, no discurso político, serve “para proteger indivíduos impopulares de retaliação – e suas ideias de supressão – no contexto de uma sociedade intolerante”.

Evidente que em muitos casos, a aura “anônima” (ao menos de imediato) conferida pela internet é ou foi necessária para garantir a própria expressão do pensamento ou de opinião, que não existiria se o respectivo autor tivesse que estar identificado. É especialmente verdade em depoimentos, revelações, denúncias, em contextos repressivos, perigosos ou políticos contrários àquelas manifestações. Os autores precisam se manter incógnitos sob pena de sofrerem retaliação, perseguição política e até ameaças reais à sua liberdade de ir e vir e integridade mental e física.

No Brasil que veda o anonimato, é freqüente o uso desse argumento para suprimir conteúdos “incômodos”, mediante a simples alegação de que, por ser anônimo, o conteúdo “x” ou “y” viola a Constituição, ou mediante o pedido de dados para identificação do autor. Ao levantar o anonimato, os “censores” disfarçados forçam os autores à auto-censura, obtendo por via transversa o resultado desejado – calar as vozes dissonantes que ousaram criticar ou denunciar aquilo de que discordam.

Isso se dá não raro por meio de ordens judiciais para entrega de dados de identificação de usuários, autores de páginas e conteúdos polêmicos na internet (blogs, vídeos, perfis/páginas em rede social, etc). Muitos dirão, “isso mesmo, a Constituição vedou o anonimato” e “quem quer opinar que mostre a cara”. Em geral, o entendimento está correto, mas não deve ser absoluto. O anonimato é proteção necessária à própria existência da expressão, ao indivíduo e a suas ideias em muitos casos, e nestes, não deveria ser considerado ilegítimo.  

Considerem o seguinte exemplo: durante um período eleitoral, a pedido do político criticado, a Justiça Criminal ou Eleitoral emite ordem de entrega imediata de dados de identificação do autor de páginas com conteúdo crítico àquele político (tal ordem é o primeiro, e por vezes o único, ato de inquéritos policiais/representações por difamação iniciados pelos políticos alvos de críticas). Considerem que o tal político é um prefeito, vereador, deputado (e, portanto, já detentor de poder), candidato à reeleição, em uma cidade pequena, com poucos milhares de habitantes; geralmente, onde há uma delegacia de polícia, um único juiz e a mídia local apoia o poder estabelecido. A ordem será emitida por esse juiz, a pedido desse delegado, para identificar quem está “ousando” criticar e “difamar” o político local.

Nesse cenário, comum em um Brasil com quase 5600 municípios, muitos sequer saídos do coronelismo, o anonimato é necessário para que o cidadão possa expressar de maneira LIVRE sua visão de oposição, sem ser alvo de ameaças, perseguições e até mesmo riscos a sua integridade física.

Infelizmente, o uso desse expediente tem se popularizado, já que produz resultados rápidos e concretos para quem busca calar vozes e estrangular discursos: uma vez identificado, o usuário, ameaçado veladamente, não mais tem coragem de expressar sua opinião, ainda que plenamente legítima.

Mediante a ordem judicial de entrega de dados para sua identificação, o usuário simplesmente fecha a página/blog/canal de vídeos, deixa de criticar ou emitir opiniões diferentes, descrente da capacidade do sistema de protegê-lo, certo de que o sistema privilegia o direito à honra e imagem em detrimento do direito de crítica e opinião.

Volta-se, portanto, à estaca zero: mesmo com a liberdade conferida a todos pela internet e assegurada pela Constituição, alguns cidadãos não podem exercê-la, já que sem o anonimato, sofrerão repressão da qual não podem se defender. Melhor, então, calar.

A história repete-se de variadas formas e em diversos países. Essa é apenas uma das facetas de como ela ocorre por aqui.

Mas, em um Brasil que pretende reformar sua política e realizar concretamente os ideais constitucionais, é impossível não repensar o conceito do anonimato, especialmente na esfera da crítica pública e eleitoral.

Não estou defendendo aqui a impossibilidade de identificação dos autores de conteúdos na internet – em geral, essa deve ser a regra. Mas, é possível punir o abuso do exercício da liberdade de expressão sem usar da vedação genérica ao anonimato; é possível conviver com o anonimato quando seja condição ou instrumento necessário para o exercício da liberdade de manifestação e de expressão. A Justiça não deve ceifar conteúdos plenamente legítimos, especialmente com valor de crítica política, apenas porque incomodam a alguém e não vieram acompanhados de uma assinatura no rodapé.

A internet permitiu a tantas pessoas, em tantas situações diferentes, expressar-se sem controle editorial e sem possibilidade de censura, o que é uma conquista sem precedentes da humanidade, é a verdadeira democratização da comunicação e do direito de “falar” e de “ouvir”.

Para permitir que a internet no Brasil siga livre de censura e de controles (mesmo aqueles exercidos de forma oblíqua) e possa continuar empoderando tantas pessoas, é necessário conviver e compreender que o anonimato poderá sim ocorrer e ser necessário em alguns casos, configurando-se até mesmo em direito e princípio, e não ser encarado como uma proibição absoluta que macula a expressão e a torna ilegal desde sua origem.

Fabiana Siviero

Advogada em São Paulo com 20+ anos de experiência​​ nas áreas contenciosa e consultiva de grandes escritórios de advocacia e empresas. De 2008 a 2016, atuou como Diretora Jurídica da Google Brasil Internet Ltda., envolvendo-se diretamente em diversas (e inéditas) questões do direito digital no Brasil. Atualmente, é sócia do escritório Fabiana Siviero Advocacia em São Paulo. Fabiana é bacharel (1996) e mestre (2007) em Direito Processual Civil pela Universidade de São Paulo, lecionou em cursos de especialização na FGV Direito e é autora de artigos em livros e revistas especializadas.