Imagem: Cacalos Garrastazu/ObritoNews

José Serra e Geraldo Alckmin, ex-governadores de São Paulo que já foram candidatos à presidência da República pelo Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB), ajuizaram ação contra o diretório do Partido dos Trabalhadores (PT) com pedido de indenização por dano moral. O pano de fundo eram duas charges disponibilizadas no site da bancada do partido na Assembleia Legislativa paulista (ptalesp.org.br), que foram descritas da seguinte maneira pela petição inicial:

“A primeira charge (doc. 4) mostra um tubo de esgoto vertendo notas de dinheiro que são embolsadas por caricaturas dos autores.  Para tornar a imputação mais violenta, o cano de onde sai o dinheiro contém a inscrição: ‘Propinoduto Tucano’, que não deixa dúvidas de que atribuição é de recebimento de propina. Não bastasse a imagem, a caricatura retrata GERALDO ALCKMIN a perguntar a JOSÉ SERRA: ‘Quanto está entrando?’, ao que o último responde: ‘30%’ […] Já a segunda charge foi um complemento (doc. 5). […] As caricaturas dos autores aparecem conduzindo um trem que acaba de ‘estourar’ um cofre e segue curso carregado de sacos de dinheiro. Logo abaixo, foi aposta a inscrição: ‘Propina pode superar 1 bilhão.’”[1]

A sentença julgou o pedido improcedente, e o Tribunal de Justiça de São Paulo a manteve, negando provimento ao recurso dos autores, por entender que “os apelantes são pessoas públicas, com robusta carreira política não só no Estado de São Paulo como no Brasil”, e, consequentemente, apesar da acidez das imputações constantes nas charges, “estas devem ser compreendidas em um contexto de sátira, pois representam artisticamente um fato público cotidiano, de extrema relevância para a população”. Ainda, foi ressaltado que “as charges não se referem à vida privada dos requerentes, mas apenas às suas pessoas enquanto homens públicos, evidenciando contextos fáticos de cunho eminentemente político”[2].

O recurso especial dirigido contra esse acórdão do tribunal paulista[3] foi admitido pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), em Brasília. Porém, o colegiado de cinco ministros, que começou a apreciar o caso este ano, está dividido a respeito do acerto do julgamento do caso pelo TJSP.

O relator (isto é, o ministro inicialmente responsável por estudar o caso e fazer uma proposta de solução para o problema), Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, entendeu que a charge continha uma imputação criminosa a Alckmin e Serra. Para ele, “a roupagem artística da charge não retira seu conteúdo ofensivo”, e propôs conceder indenização de R$ 50 mil a cada um dos autores[4].

A Min. Nancy Andrighi divergiu: é preciso, segundo ela, distinguir o conteúdo humorístico do não-humorístico. Ou, em suas palavras: “Apesar de desfrutarem do mesmo status constitucional, a mensagem humorística é distinta da informação jornalística por sua própria natureza e merece tratamento distinto por parte da jurisprudência. […] Se é exigido do cartunista que seja cuidadoso, veraz, imparcial, certamente suas charges perderão a graça e, para não incidir em ilicitude, a mensagem humorística pode perder sua própria razão de ser”[5]. De acordo com o voto divergente, o tom áspero e as imputações severas feitas aos dois políticos não seriam suficientes para tornar a charge ilícita.

No debate que se seguiu ao proferimento do voto, o Min. Villas Bôas Cueva disse que concorda em tese com as razões da Min. Nancy Andrighi, mas que elas não se aplicariam no caso concreto. Para ele, o problema da charge em questão é que ela imputa condutas criminosas a Alckmin e Serra (corrupção e peculato). Ainda, o fato de a charge estar no site do diretório do partido, e não num órgão de imprensa tradicional, retiraria essa tolerância maior com o conteúdo veiculado.

O julgamento ainda não foi concluído, já que o Min. Marco Aurélio Bellizze pediu vistas para examinar melhor o processo antes de decidir de qual lado vai se posicionar. Mas, na opinião deste colunista, a razão parece estar com o voto divergente da Min. Nancy Andrighi.

Normalmente, veículos de imprensa, ao noticiarem a existência de processos criminais, cercam-se de cuidados quando eles ainda não receberam uma decisão definitiva. É por isso que as reportagens a respeito de crimes são cheias de palavras como “suposto”, bem como de verbos no futuro do pretérito (“teria feito”, “teria exigido” etc)[6].

O problema da charge, portanto, parece ser que ela faria uma afirmação peremptória de envolvimento dos autores com ilícitos, em vez de adotar as cautelas típicas do noticiário. Mas a premissa de exigir do discurso humorístico os mesmos parâmetros postos para o jornalismo soa despropositada.

A charge normalmente encontra sua inspiração nas notícias, abordando fatos do cotidiano com o viés do humor. Neste caso não é diferente: as denúncias da charge já foram veiculadas por outros órgãos da imprensa de modo “sério”[7]. Não foram as charges que trouxeram em primeira mão, portanto, os tais fatos retratados no desenho. O que elas fizeram foi, simplesmente: (a) encontrar um meio gráfico de representar uma ideia abstrata (uma acusação de corrupção); (b) fazer essa representação sem as palavras mágicas que, segundo o entendimento dos tribunais, dão um salvo conduto à imprensa que deseja noticiar a ocorrência de fatos criminosos.

Quanto ao primeiro ponto, Ernst Gombrich, no clássico “O arsenal do cartunista”,  explica que “quando estudamos os cartuns, estudamos o uso de símbolos num contexto circunscrito”, de maneira que a pergunta a se fazer é “que papel a imagem pode representar nos escaninhos de nossa mente”. Isso porque entre os recursos disponíveis ao cartunista está a “abordagem de abstrações como se fossem realidades tangíveis”[8].

Ou seja: a charge trabalha por meio de metáforas, condensações e outras figuras estéticas e de linguagem que providenciam uma tradução visual de um conceito abstrato ou muito mais complexo, de uma maneira que possa ser entendida imediatamente pelo leitor. É o caso, na charge, dos sacos de dinheiro, do cofre e dos dutos que despejam cédulas sobre as cabeças dos políticos – todas alusões aos supostos desvios que são objeto da crítica humorística.

Quanto ao segundo ponto, a colocação das cautelas típicas do jornalismo policial dentro da charge teria um efeito péssimo sobre essa forma de expressão, que, como bem sabido, tem limitações de espaço e não pode abusar do elemento textual, sob pena de ser desvirtuada e perder a graça. Fazer as ressalvas implicitamente pretendidas pelos autores da ação – por exemplo, que eles negam as acusações, ou que os processos judiciais a respeito ainda não receberam julgamento definitivo – parece fora de lugar na charge. Isso é algo típico de se exigir de um texto jornalístico, não de uma peça de humor.

O fato de a charge estar hospedada no portal de um partido político, e não num veículo tradicional de imprensa, parece irrelevante para a solução do caso concreto. Reduzi-la de categoria apenas por sua localização parece temerário. Ademais, como demonstrado na contestação, o partido dos autores da ação também traz em seu site charges contra o partido réu e alguns de seus políticos mais notórios.

Tratando-se, assim, de litígio entre dois partidos, cada um com mecanismos amplos para redarguir as ofensas lançadas pelo outro (sejam palanques, tribunas ou sites de diretórios), a intervenção judicial na liberdade de expressão não parece acertada. Ao contrário de casos comentados em colunas anteriores, não se trata, aqui, de pessoas sem notoriedade, que necessitam do Judiciário para enfrentar algo maior que elas mesmas, mas de políticos e partidos de renome nacional, de conhecida rivalidade mútua, que trocam acusações de maneira habitual, e que já tiveram, ambos, notícias desabonadoras sobre si amplamente veiculadas na imprensa.

A título de conclusão, não custa lembrar que a tradição de zombaria aos políticos é imemorial. Por exemplo, no precedente Hustler v. Falwell (485 U.S. 46, 1988), a Suprema Corte resgatou, em sua fundamentação, a existência de charges de George Washington – o mítico primeiro presidente dos Estados Unidos, que comandou a guerra de independência e hoje dá nome à capital – como um asno. As palavras do juiz William Rehnquist, que redigiu a decisão, merecem ser lembradas porque também cabem perfeitamente para a situação aqui comentada:

O tipo de debate robusto encorajado pela Primeira Emenda se dirige à produção de discurso crítico àqueles que ocupam cargos públicos ou ‘àquelas figuras públicas intimamente envolvidas com a resolução de questões públicas importantes, ou que, em razão de sua fama, moldam eventos em áreas de interesse da sociedade como um todo’. […] Essa crítica, inevitavelmente, não vai ser sempre lógica ou moderada; figuras públicas e funcionários públicos serão sujeitos a ‘ataques veementes, cáusticos e às vezes desagradavelmente severos’. O apelo da charge política e da caricatura é frequentemente baseado na exploração de traços físicos infelizes e/ou eventos embaraçosos do ponto de vista político – uma exploração não raro calculada para machucar os sentimentos do sujeito retratado. A arte do cartunista é frequentemente desprovida de ponderação e imparcialidade; é, sim, cortante e parcial. […] ilustrações gráficas e charges satíricas têm desempenhado um papel importante no debate público e político. […] Do ponto de vista histórico, é claro que nosso discurso político teria sido consideravelmente mais pobre sem elas[9].

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[1] TJSP. 9ª Vara Cível do Foro Central da comarca de São Paulo. Autos n. 1067402-24.2013.8.26.0100. Petição inicial protocolada em 12/09/2013.

[2] TJSP. 28ª Câmara de Direito Privado. Apelação 1067402-24.2013.8.26.0100. Rel. Des. J. B. Paula Lima, julg. 26/07/2017.

[3] STJ. 3ª Turma. REsp 1762863/SP, Rel. Min. Vilas Bôas Cueva.

[4] Como o julgamento ainda não foi concluído, não há, ainda, um acórdão (decisão colegiada) a respeito do caso. A coluna foi escrita com base no que a imprensa que acompanhou a sessão registrou dos votos que os ministros leram durante a sessão. Cf., por exemplo, a matéria do Migalhas, disponível em: https://www.migalhas.com.br/Quentes/17,MI311719,31047-STJ+Acao+de+Serra+e+Alckmin+contra+PT+coloca+em+debate+limites+de. Acesso em 29/09/2019.

[5] Disponível em: https://www.migalhas.com.br/Quentes/17,MI311719,31047-STJ+Acao+de+Serra+e+Alckmin+contra+PT+coloca+em+debate+limites+de. Acesso em 29/09/2019.

[6] O precedente clássico a respeito é o Recurso Especial 984803/ES, julg. 26/05/2009, no qual a já citada Min. Nancy Andrighi, relatora do caso, pontuou o seguinte: “Ocorre que a reportagem sob análise em nenhum momento afirmou aquilo que o recorrido afirma ser falso. A recorrente afirmou que o recorrido era apenas suspeito de pertencer a organização criminosa. Ademais, foi dito que a organização criminosa era suspeita de ordenar o homicídio de um advogado. Feito esse reparo, fica mais fácil observar que a problemática central desta lide recai mais propriamente sobre a possibilidade de se afirmar que alguém é suspeito. Quando é possível afirmar livremente que alguém é suspeito de algo? É essa pergunta que exige resposta. […] Embora se deva exigir da mídia um mínimo de diligência investigativa, isso não significa que sua cognição deva ser  plena e exauriente à semelhança daquilo que ocorre em juízo. A elaboração de reportagens pode durar horas ou meses, dependendo de sua complexidade, mas não se pode exigir que a mídia só divulgue fatos após ter certeza plena de sua veracidade. Isso se dá, em primeiro lugar, porque a recorrente, como qualquer outro particular, não detém poderes estatais para empreender tal cognição. Ademais, impor tal exigência à imprensa significaria engessá-la e condená-la a morte. O processo de divulgação de informações satisfaz verdadeiro interesse público, devendo ser célere e eficaz, razão pela qual não se coaduna com rigorismos próprios de um procedimento judicial”.

[7] Cf., por exemplo: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2019/08/novas-delacoes-reforcam-propinoduto-no-metro-em-governos-do-psdb-em-sp.shtml. Acesso em 16/10/2019.

[8] GOMBRICH, Ernst Hans. O arsenal do cartunista. In: Meditações sobre um cavalinho de pau e outros ensaios sobre teoria da arte. Trad. Geraldo Gerson de Souza. São Paulo: Edusp, 1999. p. 127-128.

[9] Tradução do autor. No original, em inglês: “The sort of robust political debate encouraged by the First Amendment is bound to produce speech that is critical of those who hold public office or those public figures who are ‘intimately involved in the resolution of important public questions or, by reason of their fame, shape events in areas of concern to society at large.’ […] Such criticism, inevitably, will not always be reasoned or moderate; public figures as well as public officials will be subject to ‘vehement, caustic, and sometimes unpleasantly sharp attacks’. […] The appeal of the political cartoon or caricature is often based on exploitation of unfortunate physical traits or politically embarrassing events — an exploitation often calculated to injure the feelings of the subject of the portrayal. The art of the cartoonist is often not reasoned or evenhanded, but slashing and one-sided. […] graphic depictions and satirical cartoons have played a prominent role in public and political debate. […] From the viewpoint of history, it is clear that our political discourse would have been considerably poorer without them”.