Nos expressamos porque…
Se perguntarmos a um grupo diverso de pessoas a que propósito serve o direito a liberdade de expressão e por que o protegemos, é provável que recebamos respostas apontando em diversos sentidos. Nos expressamos por indignação. Porque queremos mudar o mundo. Porque precisamos mostrar ao mundo quem somos. Porque necessitamos entender como o mundo nos vê. Porque precisamos nos comunicar e porque dependemos do outro.
As justificativas são tantas que jamais caberiam nessas breves linhas. Mas cada uma delas e as tantas outras imagináveis carregam elementos de um debate que se desenrola pelo menos há quatro séculos, mesmo entre especialistas, e com um impacto profundo sobre a forma como nos organizamos em sociedade. Um debate de primeira importância para entendermos quais os limites do que podemos dizer, seja na Internet, numa folha de papel ou gritando com todo o ar de nossos pulmões.
Uma breve viagem histórica – sujeita, portanto, a reducionismos e imprecisões – nos ajuda a compreender as dimensões e fundamentos da livre expressão no Brasil e no mundo ocidental. Para tanto, precisamos nos transportar ao momento de questionamento das monarquias europeias, que sustentavam seus poderes em larga medida a partir de justificativas religiosas ou transcendentais. Nesse momento, a contestação do poder monárquico passava pela desconstrução de dogmas religiosos, evidenciando como a ideia de liberdade de expressão tem, na sua origem, uma importante associação com a própria noção de liberdade religiosa.
É neste contexto que surgem os primeiros fundamentos da liberdade de expressão, articulados em torno de um interesse social e individual de busca da verdade. Foi a partir desta concepção que John Milton apresentou sua defesa da liberdade de imprensa no parlamento inglês, materializada na obra Aeropagitica de 1644, e que John Stuart Mill estruturou seu argumento na obra On Liberty, de 1859. É relevante sublinhar que ambos autores afirmam que discursos/opiniões inverídicos ou equivocados também merecem proteção, pois seria somente a partir do confronto com opiniões diferentes que a verdade poderia exercitar-se e não se transformar em mero dogma ou tradição.
O mesmo argumento da busca da verdade, já em um contexto de liberalismo e democracia, foi retomado e modificado pelo juiz estadunidense Oliver Wendell Holmes no início do Século XX, que afirmou a clássica noção de um mercado livre de ideias. Para Holmes, neste mercado os homens poderiam optar pela melhor base para suas condutas. A livre circulação das ideias seria o melhor teste para a verdade, que competiria por aceitação com opiniões divergentes neste mercado de informações.
A própria noção de que existiria uma verdade e que a razão seria capaz de capturá-la, entretanto, foi sendo cada vez mais questionada ao longo do tempo. Com isso, a noção de “busca da verdade” acaba dando lugar a teorias que, de um lado, afirmam a importância da liberdade de expressão pela necessidade de uma pluralidade de opiniões, permitindo que a sociedade possa se autogovernar fazer escolhas racionais. De outro lado, alguns pensadores afirmam que a livre expressão serviria ao próprio desenvolvimento e realização individual.
Para muitos daqueles que veem na liberdade de expressão a função primordial de assegurar o autogoverno, a manifestação do pensamento sobre assuntos políticos ou de interesse social ganha especial relevância, e acaba por, não raras vezes merecer proteção especial. Em um extremo mais radical, há os que afirmam que somente discursos políticos mereceriam a proteção da liberdade de expressão. Parece óbvio que esta posição mais radical não representa nossa melhor opção, pois nestes termos inúmeras expressões acabariam desprotegidas ou vulneráveis à intervenção estatal ou de terceiros, incluindo aquelas que rompem com os padrões estéticos ou morais da sociedade, impulsionando mudanças, mas que nem sempre podem ser consideradas claramente como expressões políticas.
Na outra ponta do debate, há os que afirmam que a liberdade de expressão serve à proteção do livre desenvolvimento da personalidade individual. Para estes, ao expressar-se um indivíduo projeta sua imagem no mundo, num processo que contribuiria para a construção de sua identidade em relação aos demais membros da sociedade. Identidade, autonomia e liberdade de expressão estariam intimamente conectados.
Nenhuma das teorias abarca completamente a importância da liberdade de expressão. Mas todas elas em conjunto dão a dimensão da gravidade que constituem restrições à livre expressão e porque é importante assegurar esse direito. Trata-se de um limite não apenas à capacidade de nos expressarmos, mas também à quantidade de informações que podemos buscar e acessar.
Por essa razão, os limites à liberdade de expressão precisam ser muito bem definidos (em lei), e devem ser necessários e proporcionais. Infelizmente, entretanto, ainda é possível observar restrições exageradas à liberdade de expressão, não raras vezes justificadas de maneira pouco elaborada e a partir da afirmação (verdadeira, mas insuficiente) de que a liberdade de expressão não é um direito absoluto.
Para garantir a liberdade de expressão, é preciso ir além, enfrentando os diabos que moram nos detalhes de cada questão, de cada caso concreto. A única certeza é que há imensos desafios pela frente, principalmente pelo acelerado desenvolvimento tecnológico que coloca questões como direitos autorais, proteção da privacidade e de dados pessoais em novas tensões com a livre expressão. As primeiras vozes levantaram-se há séculos para defender a liberdade de expressão. Precisamos continuar.
É pelo direito de debater, também, que nos expressamos!