Imagem: Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil

A divulgação das comunicações entre o ex-juiz Sérgio Moro – atual Ministro da Justiça – e o Procurador da República Deltan Dallagnol pelo jornal The Intercept Brasil agitou o país nas últimas semanas. Em especial, chamaram a atenção os conteúdos dos diálogos no aplicativo Telegram. Antes e durante o processo que resultou na prisão do ex-Presidente Lula, juiz e acusador trocaram ideias e discutiram estratégias sobre forma e conteúdo de manifestações do Ministério Público e de decisões do magistrado, bem como ironizaram a defesa do réu e planejaram notas à imprensa sobre essa defesa.

No entanto, a forma como as informações vieram a público também foi fonte de controvérsias. Nas redes sociais e nas manifestações de autoridades, foi colocada em pauta a questão da legalidade/legitimidade da divulgação desse tipo de comunicação.

Não são incomuns os vazamentos de informações sobre autoridades públicas. A história é pontuada por diversos episódios de vazamento que mudaram  os rumos da política nos países. Um dos mais conhecidos casos é o Watergate, que levou à renúncia do Presidente dos EUA, o republicano Richard Nixon, em 1974. As reportagens do Washington Post contaram com a participação de informante anônimo. Muitos anos depois foi revelado que o “Garganta Profunda” – pseudônimo dado à fonte – era o vice-diretor do FBI, que conhecia as investigações sobre a invasão à sede do partido democrata e sabia da participação do Presidente.

Mais recentemente, em 2013, o jornal britânico The Guardian divulgou uma série de documentos secretos da agência de segurança NSA, dos EUA. Os documentos foram vazados por Edward Snowden, analista de sistemas da agência. Neles, foram reveladas várias ações de vigilância do Governo norte-americano contra cidadãos e diversos governos pelo mundo.

Coincidentemente, o jornalista do The Guardian que fez as matérias no caso Snowden é um dos fundadores do The Intercept e um dos jornalistas da equipe que divulga as informações sobre a Lava-Jato.

Tanto no Caso Snowden como no Caso Watergate, havia crime por parte dos agentes que realizaram os vazamentos. Eram informações que, por diferentes razões, estavam legalmente sob sigilo e eles não tinham o poder, como autoridades públicas, de dar divulgação. A identidade do “garganta profunda” só se tornou conhecida quando ele confessou em artigo publicado na revista Vanity Fair ser a fonte anônima, 33 anos após o fato. Já quanto aos segredos da NSA, Edward Snowden foi identificado e fugiu, pedindo asilo político na Russia, onde vive hoje em dia.

Os jornalistas, por outro lado, estão protegidos quando usam as informações irregularmente obtidas para informar a sociedade sobre ilegalidades cometidas por agentes públicos. Ao divulgarem essas informações, estão fazendo exatamente o que caracteriza a sua profissão: informando a sociedade.

A mídia exerce uma função central na democracia. Nesse regime, todos participam das decisões sobre negócios públicos, sendo essencial que essa participação seja informada, consciente. Quanto mais fontes de informações e quanto mais livremente esses veículos atuarem, mais forte será a democracia.

Por isso, nas democracias constitucionais, é garantido o chamado “sigilo de fonte”. É comum ver em reportagens informações que o jornalista recebeu de “fontes”, que ele não nomina, apenas referindo-se a “fontes palacianas”, “fontes internas ao órgão”, “fontes do gabinete”, entre outras expressões. A nossa Constituição estabelece que “é assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional”(Art. 5º, XIV). É uma garantia do nosso direito à informação. Sem ela, ficarão escondidas informações de interesse público. E não se trata de direito apenas garantido no plano nacional, estando expresso em documentos internacionais aos quais o Brasil aderiu.

Apesar de essencial para que exista uma imprensa livre e para que tenhamos assegurado o nosso direito à informação, ele já sofreu ataques em diversas ocasiões, inclusive no Brasil[1]. O caso mais famoso de ataque ao sigilo de fonte aconteceu nos EUA, quando a jornalista do The New York Times Judith Miller foi presa por não revelar uma fonte que havia vazado a informação revelando identidade da agente secreta Valerie Plame, o que constituía crime federal[2]. Depois do caso Valerie Plame, o sigilo de fonte foi reafirmado em 2015, quando o jornalista James Risen – à época, do New York Times, hoje, do The Intercept – não aceitou depor em processo para revelar fontes e acabou sendo dispensado de fazê-lo, quando o Procurador Geral determinou que jornalistas não mais deveriam ser forçados a testemunhar[3].

Vazamento de comunicações pessoais não é uma novidade no Brasil. Ao contrário, é corriqueiro. Os telejornais de todas as emissoras já divulgaram diálogos telefônicos entre acusados, em casos sob investigação ou em processo judicial. Muitas vezes, sai da polícia ou do Judiciário. É inclusive notório o caso da publicação das comunicações pessoais do Ex-Presidente Lula, ironicamente por decisão do ex-juiz, hoje Ministro, Sérgio Moro. A divulgação dos áudios violava claramente a Constituição, que apenas permite a interceptação das comunicações pessoais com uma finalidade bem específica: a prova em investigação ou processo criminal. A Lei n. 9.296/96 determina que  “a gravação que não interessar à prova será inutilizada por decisão judicial, durante o inquérito, a instrução processual ou após esta, em virtude de requerimento do Ministério Público ou da parte interessada”[4].

Analisei, com colegas pesquisadores do Grupo REC, grupo de pesquisa da Universidade Católica de Pernambuco-UNICAP, esse caso, na época[5]. Apesar de notória a ilegalidade, o juiz não foi punido. Pediu desculpas, à época, em explicações apresentadas ao Supremo[6], mas, depois, já declarou várias vezes não se arrepender do que fez. Na época, dizia que em “uma democracia liberal como a nossa, é obrigatório que essas coisas sejam trazidas à luz do dia”, uma concepção diferente da que agora expressa.

Mais uma vez aqui a situação do jornalista é diferenciada. O mesmo ato – dar conhecimento público de informações protegidas – tem significado distinto e deve, portanto, ser tratado de forma diferente, a depender de quem o faz. Quando uma autoridade pública o faz, sem observar os limites constitucionais e legais, há ilegalidade. Quando um jornalista o faz, como diversos fizeram com essas gravações, está exercendo a profissão. A ilegalidade do agir da autoridade não contamina o exercício da profissão pelo jornalista.

Muita discussão ainda existirá sobre o alcance do atual “Caso Lava-Jato”, não somente por ainda existirem, segundo o jornal, informações a serem divulgadas, mas, também, sobre as suas possíveis consequências. Outra garantia constitucional veda o uso de provas obtidas por meios ilegais em processos judiciais. No entanto, há quem defenda, na literatura, a relativização desse princípio, especialmente quando essa prova ilegal for a única forma de demonstrar a inocência do réu. Aparentemente, isso é o que defendem os procuradores da Lava-Jato, pois dentre as “dez medidas contra a corrupção”, que o Ministério Público da União apresentou, estava a alteração do Código de Processo Penal para ampliar as possibilidades de uso no processo de provas obtidas por meios ilícitos. O projeto citava a prova “necessária para provar a inocência do réu ou reduzir-lhe a pena” e aquela “obtida de boa-fé por quem dê notícia-crime de fato que teve conhecimento no exercício de profissão, atividade, mandato, função, cargo ou emprego públicos ou privados.” Na primeira hipótese, serviria para anular os processos decididos pelo juiz sob suspeição. Na segunda, serviria para uma possível punição dos agentes envolvidos no conluio, já que as provas ilícitas foram obtidas de boa-fé por jornalistas, procurados por fontes.

Viveremos nas próximas semanas um importante teste para nossa frágil democracia. Por mais complexas que sejam as questões jurídicas aqui envolvidas, é urgente que todos que levam a sério direitos fundamentais e façam a defesa do direito que têm os jornalistas de exercerem a sua profissão. Não se trata apenas de defender um privilégio corporativo, mas de afirmar um dos alicerces de um direito muito maior, sem o qual não há democracia: o direito à informação.

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[1] https://dissenso.org/sigilo-da-fonte/

[2] https://noticias.uol.com.br/ultnot/afp/2005/10/28/ult34u139237.jhtm

[3] https://www.jota.info/justica/ponto-para-liberdade-de-imprensa-nos-eua-14012015

[4] https://www.conjur.com.br/2017-jul-30/moro-seguiu-constituicao-divulgar-grampo-lula-dilma

[5] https://www.conjur.com.br/2016-mar-18/nao-cabe-juiz-decidir-intimidade-proteger-escuta

[6] https://oglobo.globo.com/brasil/moro-pede-desculpas-pela-polemica-sobre-divulgacao-das-escutas-de-lula-18978816