Ilustração: Paola Hiroki

Muitos esforços do governo para subverter a democracia são “legais”, no sentido de que são aprovados pelo Legislativo ou aceitos pelos tribunais. Eles podem até mesmo ser retratados como esforços para aperfeiçoar a democracia – tornar o Judiciário mais eficiente, combater a corrupção ou limpar o processo eleitoral. Os jornais continuam a ser publicados, mas são comprados ou intimidados e levados a se autocensurar. Os cidadãos continuam a criticar o governo, mas muitas vezes se veem envolvidos em problemas com impostos ou outras questões legais. Isso cria perplexidade e confusão nas pessoas. Elas não compreendem imediatamente o que está acontecendo. Muitos continuam a acreditar que estão vivendo sob uma democracia. Steven Levistsky e Daniel Ziblatt, em “Como as democracias morrem”.

O final do século XX foi marcado por uma expansão mundial do modelo de democracia constitucional, quando, em um primeiro momento, países da América Latina saíram de ditaduras e, mais tarde, países do leste europeu derrubaram regimes autointitulados comunistas. Essa expansão poderia levar a crer que a democracia estava definitivamente sendo adotada como modelo político nas economias de mercado. No entanto, o mundo está conhecendo, nos últimos anos, a deterioração do debate público e, com a ascensão de líderes demagogos e autoritários, por meio de eleições, estão sendo construídas falsas democracias.

Um dos mais interessantes livros publicados no ano passado faz um alerta sobre as democracias atuais. Analisando países que vivenciaram processos de degradação da democracia até chegarem ao ponto de não poderem mais ser considerados democráticos, mostra que há uma tendência a uma morte da democracia por dentro da institucionalidade. “Como as democracias morrem”, dos professores da Universidade de Harvard Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, mostra que as democracias não morrem mais com data certa. Não precisam, para morrer, dos golpes clássicos, com força militar e com atos jurídicos marcando a passagem de uma ordem democrática a uma ordem autoritária. Agora, as democracias morrem pelas mãos de líderes eleitos, que demonizam adversários e expressam desprezo pelas instituições.

Aos poucos, a democracia morre, mas as pessoas não percebem. As eleições periódicas continuam a existir e os poderes públicos continuam a atuar. Há uma degradação das instituições públicas e da mídia, cooptadas ou constrangidas, mas o esqueleto da institucionalidade continua lá, dando a impressão de que se trata de uma democracia. O livro mostra essa autoimagem distorcida com o caso da Venezuela. Em 2011, o Latinobarómetro, entidade que pesquisa opinião pública na América Latina, perguntou aos venezuelanos se eles consideravam o país uma democracia. O formulário trazia uma escala de um a dez, correspondendo a “de forma nenhuma democrático” e “completamente democrático”, respectivamente. Mais de oitenta por cento das pessoas atribuíram nota acima de oito.

Os líderes demagogos falam diretamente aos seus seguidores. Aí, as redes sociais jogam um papel fundamental. São os espaços nos quais eles se dirigem aos grupos de apoiadores, geralmente vacinados por um discurso que deslegitima a mídia tradicional, caracterizada como mentirosa. Nas redes sociais, ainda, são distribuídas mensagens falsas ou distorcidas, contra adversários, instituições e determinados grupos. Nas bolhas nas quais os apoiadores desses líderes vivem, a mídia tradicional é que é acusada de ser fonte de informações falsas. Donald Trump comumente acusa a grande mídia de difundir “fake news” quando publica conteúdos que não lhe agradam. A confusão que criam enfraquece o debate público, fortalecendo os vínculos entre líderes e seus seguidores.

O pior é que postagens com distorções ou mentiras parecem atender a uma necessidade humana por novidade, o que acaba por levar a pessoa a compartilhar rapidamente a notícia, sem questionar. A Revista Science publicou no ano passado estudo de três pesquisadores do MIT sobre compartilhamento de notícias falsas no Twitter. Com acesso a dados do Twitter de 2006 a 2017, os autores analisaram em torno de cento e vinte e seis mil boatos que foram compartilhados por mais de três milhões de pessoas. Para classificar o boato como verdadeiro ou falso, foram usadas informações de sites de verificação de conteúdos (fact checking). O estudo identificou que as notícias falsas são difundidas de forma mais rápida e são mais compartilhadas do que as notícias verdadeiras.

A pesquisa mostrou ainda que, ao contrário do que muitos pensam, não há diferenças entre o papel de robôs e de pessoas reais no compartilhamento desses conteúdos. Quando retirados da amostragem os perfis com comportamento compatível com o de um robô, os números sobre compartilhamentos de notícias falsas permaneciam semelhantes. Investigando as palavras usadas nas respostas aos tweets que eram compartilhados, o trabalho encontrou nas mensagens que compartilhavam notícias falsas mais palavras associadas a surpresa – o que, para eles, corrobora a hipótese do papel da novidade – e de repugnância, enquanto com as notícias verdadeiras foram encontradas palavras associadas a tristeza, ansiedade e confiança. Outro achado interessante do estudo, desconstruindo crenças sobre o compartilhamento de notícias, é o de que os repassadores de notícias falsas são, principalmente, pessoas com poucos seguidores, que publicam pouco e passam pouco tempo no Twitter.

Difícil ter um diagnóstico sobre o que ocorreu nas eleições brasileiras, já que o fluxo de informações falsas teve lugar, principalmente, por meio do WhatsApp. Mas as conclusões do estudo citados nos ajudam a ver o tamanho do problema que precisamos enfrentar. O uso de robôs para compartilhar informações falsas é mais fácil de ser atacado do que o compartilhamento por humanos. Há uma dimensão ética que precisa ser discutida.

Precisamos recuperar e reforçar a democracia. Para isso, antes é importante reconhecer que ela está em crise e que essa crise passa pelos novos usos que têm sido dados à internet por setores mais radicalizados do espectro político.