Privacidade não combina com broadcast
O WhatsApp anunciou no final do ano passado que vai reduzir o número de usuários para os quais você pode encaminhar uma mesma mensagem (uma funcionalidade chamada “broadcast”). Durante a campanha eleitoral brasileira, um artigo de opinião publicado no New York Times havia sugerido tal alteração. A decisão da empresa não veio a tempo para evitar que a desinformação interferisse no debate eleitoral, mas pretendo defender que ela é positiva.
Em junho de 2013 uma matéria do jornal inglês The Guardian entraria para a história por revelar um programa que permitia a agentes da National Security Agency (NSA) buscarem dados privados de indivíduos do mundo todo. Para tanto, o Prism coletava dados pessoais de empresas como Facebook e Google. Com o escândalo revelado por Edward Snowden formou-se um consenso entre ativistas da segurança da informação de que era preciso resgatar tecnologias de criptografia ponta a ponta. Alguns aplicativos como Telegram e Signal implementaram essa tecnologia e conquistaram rapidamente uma considerável base de usuários forçando aplicativos mais populares, como o WhatsApp, a seguir o mesmo caminho.
Tentando simplificar ao máximo o argumento técnico, para assegurar que nenhuma pessoa desautorizada leia o conteúdo de uma comunicação online, “misturamos” a mensagem a ser transmitida com uma chave secreta de forma que apenas quem possua a chave seja capaz de recuperar a mensagem. Esse processo de comunicação criptografada tipicamente é mediado por um servidor. Por exemplo, quando Alice envia uma mensagem para Bob pelo Facebook, o servidor da empresa criptografa a mensagem e guarda a chave. Conforme a comunicação online passou a se concentrar em um pequeno número de serviços de um uma quantidade ínfima de enormes empresas, isso criou o que tecnicamente é chamado de pontos únicos de falha. Ou seja, os servidores dessas empresas passaram a ser alvos muito cobiçados por grandes atores como a NSA. A solução sugerida pelos ativistas à crise de confiança disparada por Snowden era desenvolver e popularizar aplicações que guardam a chave da comunicação nos próprios dispositivos das partes que se comunicam (Alice e Bob em nosso exemplo) – é isso que chamamos de criptografia ponta a ponta. Assim, nem mesmo aqueles que tem acesso aos servidores seriam capazes de decifrar as mensagens, dificultando imensamente que um ator do porte da NSA mantenha um programa de vigilância em massa e forçando que ele invista em tecnologias para vigilância contra alvos específicos.
Nas criptofestas e criptorraves que se popularizaram nos anos que seguiram, em um primeiro momento se apostou em resgatar o PGP, um protocolo de criptografia ponta a ponta do começo dos anos 90. Não demorou, porém, para que os entusiastas percebessem que a tecnologia era inadequada às demandas atuais. O PGP busca simular o envio de uma carta timbrada em que, em princípio, não é possível ler seu conteúdo e é possível verificar a autenticidade do remetente. Em contraste, os protocolos modernos de segurança buscam simular um sussuro no ouvido garantindo, além da confidencialidade e a autenticidade, que o remetente possa negar de maneira plausível o envio da mensagem. Versões desses protocolos foram implementadas no Telegram, no Signal e finalmente, se rendendo a tendência fomentada nesses espaços de ativismo, no WhatsApp.
Voltemos agora para a questão da desinformação. No rescaldo dos atos de junho de 2013 parte dos novos atores que se mobilizaram e que pela primeira vez experimentaram participar da esfera pública formou um campo autodenominado antipetista. Em contraposição a este, a esquerda se estruturou em torno do Partido dos Trabalhadores, especialmente depois do impeachment de Dilma Rousseff, completando o processo de polarização da esfera pública. Dizer que se constituiu um processo de polarização não implica que os polos sejam simétricos. O que queremos enfatizar quando falamos em um processo de polarização são dois fenômenos: contraposição com o polo oposto e alinhamento dentro de um mesmo polo. Esse processo de polarização assimétrico trouxe consigo consequências deletérias para o debate público.
Em um ambiente saudável, a mídia serve de mediadora entre políticos e o público, entregando matérias que confirmam e que desafiam seu viés ideológico. Um dos efeitos da polarização é o que Benkler entre outros chamam de “feedback loop”. Uma vez que cada polo está produzindo e consumindo notícias do e para seus próprios pares, público e políticos entram em uma dinâmica de auto-confirmação sem mediação. Temos observado esse efeito na formação da opinião pública no Brasil desde 2016 quando decidimos a investigar o tema. É assim que a hiperpartidarização fornece o ambiente propício para a disseminação de desinformação que foi exatamente o que pudemos observar quando investigamos as mensagens que mais circularam nos grupos públicos de WhatsApp.
A capacidade de enviar uma mesma mensagem para um número grande de usuários e grupos e de reencaminhar mensagens permite que um pequeno grupo de usuários possa coordenar uma campanha de desinformação. Isso é especialmente perigoso em um ambiente de debate hiperpartidarizado como o atual. Além disso, se respeitarmos o modelo de segurança dos protocolos modernos de criptografia, não é possível rastrear a origem de uma corrente. O debate público, porém, carece do direito de resposta, do contraditório. Assim, se por um lado, a implementação de criptografia ponta a ponta no aplicativo de troca de mensagens mais popular do mundo foi uma conquista da sociedade civil que protege a comunicação um para um contra o poder desproporcional das agências de espionagem, por outro, essas mesmas proteções são uma ameaça quando combinadas com a capacidade de disseminar informação para um grande número de usuários. Em poucas palavras, privacidade não combina com “broadcast”.