Humor e proteção de direitos da personalidade: estudo a partir do caso da “Irmã Zuleide”
A recente promulgação da Lei n. 13.709/2018 – a chamada Lei de Proteção de Dados Pessoais – trouxe à tona uma série de reflexões a respeito do uso não consentido de informações sensíveis dos indivíduos para finalidades políticas e comerciais, como o direcionamento de publicidade.
Apesar de o próprio texto legal ressaltar que ele não é aplicável para o tratamento de dados pessoais realizado para fins exclusivamente jornalísticos e artísticos (artigo 4º, inciso II, alínea “a”), é interessante aproveitar o epicentro de discussões sobre o tema para abordar precisamente esse tipo de situação não prevista pela norma – isto é, quando informações e atributos de alguma pessoa são utilizados para fins artísticos. Ou, mais precisamente, para o que interessa a esta coluna, humorísticos.
O caso paradigmático parece ser o da “Irmã Zuleide”[1], famoso perfil fictício de redes sociais que, como explica a página do Museu de Memes, “satiriza o fanatismo religioso, especialmente o protestante”, por meio de uma mulher que aparenta seguir religião evangélica[2] e que utiliza bordões como “chocada em Cristo” e “oh, glória”.
A questão é que as páginas da personagem na rede utilizavam a foto de uma pessoa de verdade, que soube da existência delas apenas em novembro de 2011, quando elas já faziam sucesso. Efetivamente evangélica e professora de educação infantil no interior de São Paulo, ela foi alertada a respeito do uso não autorizado de sua foto por uma amiga que se deparou com a página da “Irmã Zuleide” no Orkut.
A questão foi resolvida com base nos dispositivos referentes à proteção da imagem (consagrada como direito fundamental no artigo 5º, incisos V e X, da Constituição Federal). Segundo o artigo 20 do Código Civil, o uso da imagem de alguém necessita de consentimento – a não ser em hipóteses já bem definidas pela jurisprudência, como a captação de imagens em lugares públicos[3].
Outro fator que certamente pesou foi o fato de a professora não ser uma pessoa pública (isto é, não ocupar um cargo político de destaque, não ser uma atriz de renome, entre outras posições que lhe atrairiam notoriedade e, por consequência, uma necessidade maior de tolerância com a existência de um perfil satírico à sua pessoa).
Ela ingressou com uma ação pedindo que o Google, responsável pelo Orkut, informasse os dados do usuário que criou o perfil “Irmã Zuleide”[4]. O provedor cumpriu a obrigação no curso do processo e excluiu a página da rede social, que acabou extinta em 2014.
No entanto, com o perfil em questão não estava em jogo apenas o direito de imagem da professora: descobriu-se que, nos idos de 2012, o criador da personagem estava atuando como DJ em festas Brasil afora. A imagem da “Irmã Zuleide” era destacada em material promocional veiculado na internet e em flyers como a principal atração desses eventos (um deles, aliás, batizado de “Mudança de Hábito”, em alusão ao clássico estrelado por Whoopi Goldberg).
A professora passou a sustentar, então, que sua imagem estava sendo utilizada para fins comerciais[5] – situação que não se encontra entre as exceções ao uso desautorizado da imagem de alguém.
Foram ajuizadas, então, uma série de ações em que a autora pleiteava indenização por ter seu retrato estampado no material publicitário das festas sem seu consentimento. Houve casos em que foram confeccionadas até mesmo máscaras com seu rosto para utilização nas baladas.
Um ponto a ser observado é que as ações eram todas direcionadas contra as casas noturnas que abrigaram os eventos, e não contra o criador do perfil.
O resultado das ações foi, até agora[6], todo favorável à professora, embora o valor pedido a título de reparação (R$ 78.800,00) não tenha sido concedido em nenhum dos processos. As indenizações variaram entre cinco[7], doze[8], quinze[9] e trinta mil reais[10].
Porém, o que pareceu realmente grave foi a adoção de medidas criminais contra o criador da personagem, que chegou a ser preso no meio de uma festa em Santos, no litoral paulista. Ainda que, segundo reportagem sobre o assunto[11], o DJ tenha sido liberado pouco depois de assinar um termo circunstanciado, a gravidade dos fatos provavelmente está por trás dos cuidados maiores que a página da “Irmã Zuleide” no Facebook adota hoje em dia, tais como:
- utilização de foto diversa para ilustrar o perfil (se de alguém que consentiu para isso, ou se criada com recursos tecnológicos, ou ambos, não se sabe)[12];
- explicitação de que se trata de personagem fictício[13];
- colocação do perfil do criador no campo “membros da equipe”, o que não deixa dúvidas a respeito do responsável pelo conteúdo da página.
O caso aqui descrito deixa evidente o quanto os nossos rastros digitais podem ser utilizados das maneiras mais impensadas – até mesmo para a produção de humor. Não são raros, aliás, os casos de fotografias, vídeos e áudios que viralizam sob a forma de memes, in natura ou após a adição de efeitos digitais e montagens. No caso concreto, não é irrazoável supor que a foto da professora tenha sido encontrada em bancos de imagens disponíveis em sites de busca.
O caráter democrático da internet – que horizontalizou a profissão de humorista, hoje em tese acessível a qualquer pessoa com boas ideias e disposta a abastecer uma página em redes sociais – não significa, porém, que não existam certos limites postos pelo ordenamento jurídico, entre eles a proteção dos direitos da personalidade, incluindo o direito a preservar a própria imagem.
O caso da “Irmã Zuleide” parece ter conseguido chegar a termos razoavelmente satisfatórios para as duas partes. A professora deixou de ter seu retrato utilizado indevidamente e está sendo indenizada por isso. O criador da personagem, por sua vez, continua produzindo conteúdo humorístico com frequência, utilizando outra fotografia para dar rosto à sua criação e tomando maiores cautelas ao mencionar o caráter ficcional de sua página. Que futuros embates entre a liberdade de expressão humorística e a proteção dos direitos da personalidade também encontrem soluções assim adequadas.
[1] Atualmente, a personagem está presente no Facebook (https://www.facebook.com/IrmaZuleideOficial), onde tem mais de 7 milhões de curtidas e quase esse número de seguidores; no Instagram (https://www.instagram.com/irmazuleideoficial/?hl=pt-br), onde conta com 1,5 milhão de seguidores; e no Twitter (https://twitter.com/Irma_Zuleide), plataforma em que registra pouco mais de 1 milhão de seguidores.
[2] O Museu de Memes é um projeto da Universidade Federal Fluminense (UFF) que compila fenômenos humorísticos na internet. O caso da Irmã Zuleide é estudado em: http://www.museudememes.com.br/sermons/irma-zuleide/. Acesso em 28/08/2018.
[3] O caso paradigmático a respeito é o Recurso Especial 595600/SC, relatado pelo Ministro César Asfor Rocha e julgado pelo Superior Tribunal de Justiça em 18/03/2004, que envolvia fotografia captada numa praia.
[4] TJSP. 2ª Câmara de Direito Privado. Apelação 0008252-24.2012.8.26.0114. Rel. Des. José Joaquim dos Santos, julgado em 04/08/2015.
[5] Consta, aliás, que o criador da página é sócio de uma empresa de conteúdo digital.
[6] Isso porque há ações ainda em andamento (autos 1023104-31.2015.8.26.0114, 1023099-09.2015.8.26.0114, 1023093-02.2015.8.26.0114, 1029022-50.2014.8.26.0114), aparentemente em virtude de dificuldades para a citação de algumas das casas noturnas rés que utilizaram a “Irmã Zuleide” como chamariz para seus eventos.
[7] TJSP. 7ª Câmara de Direito Privado. Apelação 1008348-17.2015.8.26.0114. Rel. Des. Mary Grün, julgado em 02/03/2018; TJSP. 8ª Câmara de Direito Privado. Apelação 1010555-86.2015.8.26.0114. Rel. Des. Grava Brazil, julgado em 15/12/2016.
[8] TJSP. 10ª Vara Cível de Campinas. Autos 1025377-17.2014.8.26.0114. Juiz de Direito Gabriel Baldi de Carvalho, julgado em 31/12/2017 (sentença não atacada por recurso).
[9] TJSP. 9ª Câmara de Direito Privado. Apelação 1029423-15.2015.8.26.0114. Rel. Des. José Aparício Coelho Prado Neto, julgado em 21/02/2017; TJSP. 33ª Câmara de Direito Privado. Apelação 1018956-25.2014.8.26.0562. Rel. Des. Eros Piceli, julgado em 13/06/2016; TJSP. 9ª Câmara de Direito Privado. Apelação 1029028-57.2014.8.26.0114. Rel. Des. Galdino Toledo Júnior, julgado em 01/09/2015.
[10] TJSP. 10ª Câmara de Direito Privado. Apelação 1027891-40.2014.8.26.0114. Rel. Des. Elcio Trujillo, julgado em 22/08/2017.
[11] “Verdadeira ‘Irmã Zuleide’ está sofrendo bullying, diz polícia”. Disponível em: http://g1.globo.com/sp/santos-regiao/noticia/2013/01/verdadeira-irma-zuleide-estaria-sofrendo-bullying-diz-policia.html. Acesso em 28/08/2018.
[12] O criador da personagem encontrou um modo criativo de realizar a substituição: após remover a foto da professora, trocou-a pela de um rosto enfaixado, submetido a cirurgias plásticas, e depois substituiu essa foto pela utilizada atualmente no perfil (informação disponível em: http://g1.globo.com/sp/santos-regiao/noticia/2013/02/apos-detencao-dj-decide-mudar-o-rosto-da-personagem-irma-zuleide.html. Acesso em 28/08/2018).
[13] Conforme pode ser verificado em: https://www.facebook.com/pg/IrmaZuleideOficial/about/?ref=page_internal. Acesso em 28/08/2018.