Réquiem para Herzog
“Não é fácil eliminar um corpo. Uma vida é fácil. Uma vida é cada vez mais fácil. Mas fica o corpo […] O que fazer com ele? […] Fica a memória. Ficam as mães. Seria fácil se o corpo se extinguisse com a vida. A vida é um nada, acaba-se com a vida com um botão ou com uma agulha. Mas fica o corpo, como um estorvo. Os desaparecidos não desaparecem. Sempre há alguém sobrando, sempre há alguém cobrando. As valas comuns não são de confiança. A terra não aceita cadáver sem documentos. Os corpos são devolvidos, mais cedo ou mais tarde. A terra é protocolar, não quer ninguém antes do tempo. A terra não quer ser cúmplice. Tapar os corpos com escombros não adianta. Sempre sobra um pé, ou uma mãe. Sempre há um bisbilhoteiro, sempre há um inconformado. Sempre há um vivo.”
Luís Fernando Veríssimo, Como na Argentina
Em algum momento entre a manhã e o início da tarde do dia 25 de outubro de 1975, Vladimir Herzog foi assassinado em uma sessão de tortura nas dependências do Destacamento de Operações de Informação – Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI) do II Exército, na Rua Tutóia, em São Paulo. O fotógrafo Silvaldo Leung Vieira, aluno do curso de fotografia do Instituto de Criminalística da Polícia Civil, foi chamado ao órgão às pressas para registrar o “encontro de um cadáver”. Quando entrou em uma das celas, encontrou o corpo de Herzog pendente, enforcado com uma tira de pano amarrada à janela. Fez a foto que, para a ditadura, juntamente com um atestado de óbito forjado, seriam suficientes para comprovar o suicídio. Vieira não ficou com a câmera, nem com os negativos. A história parecia encerrada.
Contudo, Vlado tinha uma companheira, tinha filhos e tinha amigos, pessoas que nunca aceitaram a versão construída pela ditadura civil-militar para se desresponsabilizar sobre o assassinato de Herzog, e que lutaram incessantemente para a investigação e o esclarecimento das reais circunstâncias de sua morte. Entretanto, frente a todas as dificuldades interpostas na busca pelos direitos à verdade e à justiça, encontraram o pior inimigo: o Estado ditatorial brasileiro e suas instituições. O crime não foi investigado, não houve julgamento nem punição para os responsáveis.
Pelas demandas da família não atendidas em âmbito interno, o “caso Herzog” foi levado à Corte Interamericana de Direitos Humanos. E lá, em sentença proferida no dia 15 de março de 2018, tornada recentemente pública, o Brasil foi condenado, e deve cumprir, a partir de agora, determinadas ações estipuladas na condenação. A Corte já havia se pronunciado semelhantemente e condenando o Brasil em relação aos desaparecidos da Guerrilha do Araguaia.
O tempo é inexorável em relação ao afastamento cronológico daqueles acontecimentos das novas gerações e sua diluição na memória pública, e também institui a perda desses lutadores e dessas lutadoras, que mantiveram vivas as demandas por memória, verdade e justiça passados mais de 50 anos do golpe civil-militar de 1964. Porém, o tempo abre outras possibilidades, impensáveis na contemporaneidade das violações de direitos humanos durante a ditadura: enquanto os mais novos elaboram questionamentos diferentes sobre o passado recente, outros organismos garantem direitos negados aos familiares de mortos e desaparecidos políticos e a sociedade brasileira. E, assim, a fotografia de Herzog pode ser compreendida a partir do “efeito bumerangue”: foi utilizada pela ditadura para forjar um suposto suicídio, mas, hoje, cristalizou-se como evidência do terrorismo de Estado e da impunidade. Como afirmou Veríssimo em seu belíssimo texto, é preciso que os agraciados pelos privilégios econômicos e jurídicos concedidos pela ditadura temam, pois, “mais cedo ou mais tarde, os mortos brotam da terra”.