Não é caso de polícia
Em 2018, discutiremos a disseminação de fake news. Com eleições por vir em meio à crise política e na esteira das eleições presidenciais nos Estados Unidos e na França, é compreensível que o assunto tenha ingressado na pauta da regulamentação do pleito deste ano.
Em janeiro, foi anunciada a criação de uma força-tarefa composta pelo Judiciário, Ministério Público Federal e a Polícia Federal, cuja atuação visa coibir a disseminação de notícias falsas para garantir a higidez eleitoral. Também em janeiro, noticiou-se que a Polícia Federal cogita apresentar projeto de lei para criminalizar especificamente a disseminação de fake news.
Não seria novidade. Tramita no Congresso o PL 6812/2017 (ao qual foram apensados os PLs 7604/2017 e 8592/2017), que propõe punir com 2 a 8 meses de detenção e multa a conduta de “divulgar ou compartilhar, por qualquer meio, na rede mundial de computadores, informação falsa ou prejudicialmente incompleta em detrimento de pessoa física ou jurídica”.
Também o PLS 473/2017 propõe incluir no Código Penal o artigo 287-A para incriminar a prática de “divulgar notícia que sabe ser falsa ou que possa distorcer, alterar ou comprometer a verdade sobre informações relacionadas à saúde, à segurança pública, à economia nacional, ao processo eleitoral ou que afetem interesse público relevante”. A pena prevista para o agente é de 6 meses a 2 anos de detenção e multa ou 1 a 3 anos de reclusão e multa, em caso de utilização da rede mundial de computadores ou de outro meio que facilite a divulgação da mentira.
Invenções, distorções e manipulações de fatos para influenciar a opinião pública não são invenção da internet. É bem verdade que as redes sociais potencializam e amplificam a disseminação de notícias, verdadeiras ou falsas. Daí a tratar o assunto como caso de polícia, isso são outros quinhentos.
“Não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal”, é o que enuncia o artigo 5º, XXXIX da Constituição. O princípio da legalidade que rege o direito penal desdobra-se em outros: não haverá crime nem pena sem lei prévia, escrita e certa.
A exigência de lei certa, como já advertia Francisco de Assis Toledo[1], “diz com a clareza dos tipos, que não devem deixar margens a dúvidas, nem abusar do emprego de normas muito gerais ou tipos incriminadores genéricos, vazios”. Está intrinsecamente ligada, portanto, à chamada função garantidora da lei penal, que protege os indivíduos dos abusos do Estado.
Não é difícil entender por que a aprovação de uma lei que criminalize a criação e a disseminação de fake news romperá com o princípio da legalidade. Os tipos penais projetados com essa finalidade não são o que chamamos de normas penais em branco[2]. A definição de fake news não se extrairá de outra norma, mas das convicções pessoais de delegados, promotores e juízes, aos quais caberá, em maior ou menor medida, dizer se consideram certos conteúdos verdadeiros ou falsos.
Outro sério problema que se colocará é o da definição da autoria delitiva. Tal como projetados, os tipos penais incriminam não apenas quem cria, mas quem divulga notícia falsa. Por mais que sejam tipos dolosos, na prática, dificilmente será possível distinguir com certeza quem maliciosamente espalhou a notícia de quem acreditou na mentira e, assim, passou-a adiante.
Diante da profusão diária de informações em redes sociais, quantos inquéritos policiais serão instaurados na tentativa (inglória) de identificar os autores dos imaginados crimes? Há potencial para uma verdadeira caça às bruxas.
Ainda que salvaguardar as eleições da influência de fake news seja um objetivo legítimo e consentâneo com a democracia, este não é um objetivo a ser perseguido com o uso do direito penal – uso esse que muito facilmente pode ser desvirtuado para servir ao controle dos discursos pelo Estado.
Temos, no Brasil, a tendência a buscar no emprego da força a solução para problemas que dependem essencialmente de educação. A circulação de fake news não é caso de polícia. Para lidarmos com essa inexorável realidade, teremos que investir na educação dos usuários da rede para que possam ter crítica sobre o que leem e veem, e capacidade de verificar informações.
Em um país onde subsistem níveis alarmantes de analfabetismo, esse é, de fato, um grande desafio. É preferível encará-lo a optar pelo imediatismo da solução penal, que pode mais comprometer a democracia do resguardá-la.
[1] Princípios básicos de direito penal. 5ª. ed., São Paulo, Saraiva, 2000, p. 29.
[2] Lei incompleta, cujo conteúdo só pode ser definido pela integração com o conteúdo de outra lei ou ato normativo.