Imagem: Caio Borges

Sexta-feira, 13 de dezembro de 1968 não foi um dia qualquer e essa afirmação transcende a superstição do dia 13. Na véspera, a Câmara dos Deputados rejeitou, por uma diferença de 75 votos, o pedido de autorização para abertura de processo no Supremo Tribunal Federal (STF) contra o deputado federal pelo MDB, Márcio Moreira Alves. O parlamentar, em setembro daquele ano, pronunciou um discurso considerado atentatório e ofensivo às Forças Armadas. Frente à negativa da Câmara, o Conselho de Segurança Nacional, órgão vinculado diretamente à Presidência da República, cujo objetivo, expresso no artigo 90 da Constituição de 1967 era “assessorar o Presidente da República na formulação e na conduta da Segurança Nacional”, reuniu-se no dia seguinte no Palácio das Laranjeiras, e aprovou por ampla maioria de votos a promulgação do Ato Institucional número 5 (AI-5).

Hoje, analisando o episódio e suas consequências com uma visão retrospectiva, sabe-se, por exemplo, que o AI-5 teve uma vigência de dez anos, que suas medidas resultaram na institucionalização do terrorismo de Estado no Brasil, dentre outras coisas. Contudo, o que gostaria de propor nessa conjuntura de rememoração dos 50 anos dos acontecimentos de 1968, é que analisemos aquele 13 de dezembro de 1968 como um condensador das experiências de sonhos e utopias e de terror. Havia um futuro aberto para aquela geração, onde cabiam esperanças de reformas e revoluções. O risco que corremos ao propor essa abordagem é de ignorarmos a complexidade das relações sociais, as chamadas “zonas cinzentas”, ao privilegiar uma dualidade que é simplificadora.

Poderíamos dizer que 1968 começou no dia 28 de março quando, durante uma manifestação estudantil no Rio de Janeiro, o estudante secundarista Edson Luís de Lima Souto foi morto pela Polícia Militar no restaurante estudantil do Calabouço. O assassinato de Edson Luís fez com que a União Nacional dos Estudantes (UNE) decretasse greve geral estudantil e passeatas de protesto foram promovidas pelo país. No dia 30, o Ministro da Educação e Cultura, Gama e Silva, manifestou-se contrariamente às manifestações estudantis e de crítica à repressão, e ordenou que essas manifestações fossem reprimidas em todo o território nacional. A UnB se encontrava, no início de abril, sob cerco policial.

Em maio, em consequência da mobilização dos estudantes, foi aprovada a Lei nº 5.439, de 22 de maio de 1968, que permitia a responsabilização de jovens de 14 a 18 anos de idade. “[S]e os elementos referidos no item anterior evidenciam periculosidade, o menor será internado em estabelecimento adequado, até que, mediante parecer do respectivo diretor ou do órgão administrativo competente e do Ministério Público, o Juiz declare a cessação da periculosidade.” O terror, existente desde o dia 31 de março de 1964, amplia suas definições de potenciais inimigos.

O terror começa a caminhar lado a lado com os sonhos e as utopias quando é descoberto, em outubro de 1968, o XXX Congresso da UNE, que estava sendo realizado clandestinamente na cidade de Ibiúna, em São Paulo.

Em novembro, a ditadura promulga a lei nº 5.536, de 21 de novembro, submetendo à censura prévia o cinema, a rádio, o teatro e a televisão. Uma censura sempre política, que trazia o tema da moralidade para o debate da segurança nacional. Havia muita gente incomodando, e não necessariamente militantes de organizações de esquerda armada, mas sim gays, mulheres, negras e negros que não aceitavam as posições a que historicamente foram relegados e relegadas.

A capa do Jornal do Brasil do dia 14 de dezembro de 1968 trazia em seu canto superior esquerdo a previsão do tempo para aquele sábado: “Tempo negro. Temperatura sufocante. O ar está irrespirável. O país está sendo varrido por fortes ventos. Máxima 38º, em Brasília. Mínima: 5º, nas Laranjeiras.” Curiosamente, uma triste coincidência: no dia anterior, 13 de dezembro, data da promulgação do Ato Institucional número 5, comemorava-se o “Dia do Cego”.

Aquele dia 13 começou cedo. Ministros militares mantiveram contatos telefônicos e, depois, dirigiram-se para o Palácio das Laranjeiras, na cidade do Rio de Janeiro, Estado da Guanabara, para reunirem-se com o general Arthur da Costa e Silva para definir a resposta da ditadura ao ato considerado de “subversão” da Câmara dos Deputados ao não permitir o processamento de Márcio Moreira Alves. Naquele momento, Costa e Silva incumbe Luís Antônio Gama e Silva, seu Ministro da Justiça, da redação de um novo Ato Institucional. Antes de ser empossado Ministro da Justiça em 1967, Gama e Silva participara da “Revolução Constitucionalista de 1932”, fora reitor da USP e Ministro da Justiça e da Educação e Cultura em 1964. Após deixar o cargo em 1969, tornou-se embaixador do Brasil em Portugal até 1974.

Às 19 horas do dia 13 de dezembro de 1968, o programa “A Voz do Brasil” anunciava que, a qualquer momento, o governo faria um importante pronunciamento. As emissoras de televisão projetavam slides com a palavra “Atenção”, afirmando que estava tudo pronto para a comunicação. Contudo, somente às 22 horas e 45 minutos o Ministro da Justiça, Luís Antonio da Gama e Silva, entrou no Salão Nobre do Palácio das Laranjeiras, onde já estavam outros ministros, assessores e diretores da Presidência e outras pessoas, sentou-se ao lado do locutor oficial de “A Voz do Brasil”, Alberto Curi e, falando em rede nacional de emissoras de rádio e televisão, anunciou que o governo decidira adotar uma série de medidas “para garantir a vitalidade da Revolução.”

Curi leu a íntegra do Ato Institucional número 5 e o Ato Complementar número 38, todos no mais profundo silêncio, interrompido somente pelos ruídos das máquinas fotográficas. Às 23 horas e 30 minutos, Gama e Silva deixou o Palácio das Laranjeiras, afirmando, sorridente, que “esta sexta-feira foi 13 para muita gente.”

Que nunca mais tenhamos sextas-feiras 13 como aquela de 50 anos atrás.

Caroline Silveira Bauer

Professora do curso de História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, onde atua na graduação e na pós-graduação. Entre 2011 e 2013, trabalhou como consultora da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República. É autora de diversas obras sobre a temática da ditadura civil-militar brasileira, integrando grupos de pesquisa e investigação nacionais e internacionais.