Imagem: Caio Borges

Os docentes dos cursos de licenciatura têm sido constantemente desafiados a se apropriarem das novas tecnologias de informação e comunicação e refletirem sobre seu uso nos processos de ensino e aprendizagem. Em se tratando da formação de professoras e professores de história, esse tema envolve, ainda, discussões sobre consciência histórica e culturas de história, divulgação do conhecimento histórico, história digital, a história no espaço público, etc. Embora não sejam temáticas inéditas nos debates internos da área, sua interrelação com o mundo virtual e o ensino fez com que fossem questionados alguns parâmetros éticos e epistemológicos da disciplina.

Neste semestre, estou ministrando um curso de história do Brasil contemporâneo, em que, trabalhando com a temática da ditadura civil-militar, tenho desenvolvido muitos desses temas em sala de aula, dialogando com as alunas e os alunos sobre questões relativas à fiabilidade dos documentos e testemunhos e à verdade, aos confrontos entre história e memória e entre versões acadêmicas e públicas da história. No contexto desses diálogos, um aluno, há algumas semanas, compartilhou comigo um caso muito interessante ocorrido no Estados Unidos que permite problematizar ainda mais as relações entre a história, seu o ensino e sua aprendizagem e o mundo virtual.

O professor T. Mill Kelly, do curso de história da George Mason University, propõe aos discentes uma forma, no mínimo inusitada, de desenvolver habilidades que lhes permitam realizar uma rigorosa crítica às fontes e se tornarem melhores consumidores de informação histórica. Em seu curso, intitulado “Mentindo sobre o passado” [Lying about the past], as alunas e os alunos são encorajados a criarem fatos históricos a partir de dados empíricos, além de forjarem e manipularem evidências e provas para corroborarem suas versões, chegando a criar verbetes na Wikipedia, transcreverem fontes primárias e anexarem fotografias de papéis propositalmente envelhecidos, realizarem entrevistas com profissionais, garantindo a autoridade da expertise na corroboração dos acontecimentos, etc. O professor anunciava publicamente que as versões construídas pelas alunas e pelos alunos eram falsas somente ao final do semestre, fazendo com que as pessoas divergissem a seu respeito: enquanto uns consideravam-no um gênio e, outros, demonstravam-se extremamente desapontados. Kelly foi taxado, ainda de “vândalo digital”.

Trata-se, em outras palavras, de um “anti-curso do mal historiador”, parafraseando o título do livro de Carlos Aguirre Rojas, em que discentes aprendem o falseamento, a negação e o revisionismo, justamente para não sê-los. Várias reportagens foram feitas à época do oferecimento dos cursos, em 2008 e 2012, e a que meu aluno enviou foi a de Yoni Appelbaum, intitulada “Como o professor que enganou a Wikipedia foi pego pelo Reddit” [How the professor who fooled Wikipedia got caught by Reddit], publicada no Atlantic Daily em 15 de maio de 2012.

Como afirmei anteriormente, o experimento didático do professor permite questionamentos éticos e epistemológicos no âmbito da história, inclusive em relação a passados traumáticos, como o próprio tema da ditadura civil-militar brasileira: o que faz com que acreditemos em um testemunho? Como corroborar as informações prestadas em um depoimento quando há apenas uma pessoa para narrar determinado evento, como o caso de Inês Etienne Romeu, única sobrevivente do centro clandestino de detenção Casa da Morte, em Petrópolis, no Rio de Janeiro? Poder-se-ia argumentar sobre a ausência de ética e a imoralidade no falseamento ou na mentira em testemunhos como esses, porém isso já ocorrera, inclusive em relação ao Holocausto, um dos eventos com maior blindagem moral. Não foram poucos os que mentiram terem sido sobreviventes de campos de concentração, como os casos de Binjamin Wilkomirski e Enric Marco Batlle.

No entanto, gostaria de chamar a atenção para outra possibilidade de questionamento a partir da experiência proposta pelo professor estadunidense: o quão fiáveis são as informações que encontramos na internet. Apesar de ser um experimento controlado, as falsas histórias criadas pelos discentes foram disponibilizadas online sem serem desmentidas durante tempo suficiente para que uma pessoa desavisada utilizasse aquela informação como fonte. Isso nos remete a total ausência de controle sobre a circulação de informações na internet, sobre o apagamento de versões negacionistas e revisionistas da rede, mas, principalmente, sobre a importância de seguir trabalhando com esses temas em sala de aula das licenciaturas para que os futuros docentes lidem com as frágeis experiências de pesquisa na internet das novas gerações.

Caroline Silveira Bauer

Professora do curso de História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, onde atua na graduação e na pós-graduação. Entre 2011 e 2013, trabalhou como consultora da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República. É autora de diversas obras sobre a temática da ditadura civil-militar brasileira, integrando grupos de pesquisa e investigação nacionais e internacionais.