Imagem: Divulgação/Netflix

Paris, 25 de outubro de 1988. Três coquetéis molotov explodem no interior do Teatro Saint Michel, ferindo treze pessoas, quatro das quais com queimaduras graves[1]. Lá estava sendo projetado o filme A última tentação de Cristo, do diretor norte-americano Martin Scorsese. Baseado no romance do escritor grego Nikos Kazantzakis, trata-se de um drama bíblico até bastante convencional (assentado em passagens clássicas como o salvamento de Maria Madalena do apedrejamento, a ressurreição de Lázaro e a última ceia), com exceção do terço final, que se dedica a imaginar o que ocorreria caso Jesus (interpretado por Willem Dafoe) não tivesse completado a missão que lhe havia sido confiada por Deus – o que envolve um casamento com Maria Madalena (Barbara Hershey), filhos e uma existência pacata como carpinteiro. Jesus, porém, se arrepende e pede ao Pai para voltar à cruz e consumar seu papel de redentor.

Santiago do Chile, 29 de novembro de 1988. O Consejo de Calificación Cinematográfica proíbe o lançamento do filme de Scorsese no país, que vivia então os últimos anos da ditadura de Augusto Pinochet (1973-1990)[2].

Rio de Janeiro, 24 de dezembro de 2019. Uma bomba explode na sede da produtora Porta dos Fundos, que havia lançado, algumas semanas antes, seu especial de Natal, intitulado A primeira tentação de Cristo. Disponível na plataforma de streaming Netflix, o média-metragem, de conotação claramente humorística e jocosa, imagina uma festa de aniversário surpresa de 30 anos para Jesus (interpretado por Gregório Duvivier), na qual está presente Orlando (Fábio Porchat), um rapaz que ele conhecera durante o jejum de 40 dias no deserto e com quem se sugere que ele teria um relacionamento. Tal como no filme de Scorsese (com o qual a produção humorística já dialoga a partir do título), aqui tem-se um Jesus muito humano e cheio de dúvidas sobre sua aptidão e força para cumprir até o final a missão divina que lhe foi confiada. Curiosamente, apesar dos diversos elementos profanos e heréticos observados ao longo do vídeo, no fim das contas Jesus abraça os desígnios de Deus e, por conseguinte, seu papel como salvador da humanidade.

Rio de Janeiro, 8 de janeiro de 2020. O Tribunal de Justiça atende a um pedido feito pela Associação Centro Dom Bosco de Fé e Cultura e determina a indisponibilização da produção do Porta dos Fundos na Netflix[3].

Mais de trinta anos separam a última da primeira tentação de Cristo, mas, ao que parece, os ímpetos censórios – seja de uma ditadura militar, seja de um Judiciário conservador – parecem estar longe do fim. Nesse sentido, portanto, o adjetivo “última”, do texto desta coluna, longe de significar “derradeiro”, traz apenas o lamentável sentido de “mais recente”.

Neste último caso, após a disponibilização do vídeo na Netflix, diversas pessoas físicas e jurídicas procuraram o Poder Judiciário brasileiro com pedidos para sua remoção da plataforma. Todos os pedidos haviam sido negados, inclusive pelo desembargador plantonista do TJRJ – que havia determinado apenas que se fizesse constar no banner do vídeo que ele era uma sátira ofensiva a valores cristãos e estipulasse classificação indicativa de 18 anos[4].

Terminado o período de festas e recesso dos tribunais, o recurso apreciado em regime de plantão no TJRJ foi encaminhado ao seu relator sorteado. Com o processo em seu gabinete, o desembargador Benedicto Abicair reviu a decisão do colega[5] e entendeu que os argumentos da Associação Centro Dom Bosco de Fé e Cultura mereciam ser acolhidos. A decisão de 40 laudas se sustenta basicamente em cinco argumentos:

(a) não haveria nos autos, por enquanto, elementos suficientes para decidir “com quem está o direito”, nem para respaldar uma “interpretação definitiva” da obra;

(b) haveria a necessidade de resguardar a produção do acesso de menores, tendo em vista que, na compreensão do desembargador, a Netflix é “passível de ser acessada por qualquer um que queira nela ingressar”;

(c) poderiam haver outras reações violentas e irreversíveis ao vídeo, a par do atentado a bomba sofrido pela produtora;

(d) o desembargador vê “com bons olhos todo e qualquer debate ou crítica à religião, racismo, homossexualidade, educação, saúde, segurança pública e liberdade de imprensa, artística e de expressão, desde que preservados a boa educação, o bom senso, a razoabilidade e o respeito à voz do outro”; a produtora Porta dos Fundos, porém, não teria sido “centrada e comedida” nem justificou sua obra através de “dados técnicos”;

(e) por conseguinte, seria necessário se pautar pela cautela, como se depreende do dispositivo da decisão: “se me aparenta, portanto, mais adequado e benéfico, não só para a comunidade cristã, mas para a sociedade brasileira, majoritariamente cristã, até que se julgue o mérito do Agravo, recorrer-se à cautela, para acalmar ânimos, pelo que CONCEDO A LIMINAR na forma requerida”.

Nenhum dos argumentos da decisão resiste a um exame mais detido.

Em primeiro lugar, nenhuma obra tem uma “interpretação definitiva” – pelo contrário, tudo está sempre aberto a novas compreensões. Não será o tempo o fator a conferir um sentido unívoco ao vídeo, e a questão em debate não é qual seria esse sentido, mas se ele poderia ser proibido ou não.

Em segundo lugar, a Netflix é um serviço de streaming, cujo acesso, em computadores, depende de senha, e, mesmo nos aparelhos de televisão das residências, pode, por óbvio, sofrer regulação de pais ou responsáveis por crianças e adolescentes. O episódio em questão não está na TV aberta nem em telões em praça pública Brasil afora, e seu acesso depende da opção do espectador em clicar no play.

Em terceiro lugar, o atentado sofrido pela produtora não justifica a interdição da obra. Trata-se de um fato criminoso já em investigação, que não deve ter o poder de obstaculizar que outros tenham acesso a ela, se assim desejarem.

Em quarto lugar, não será toda manifestação artística, intelectual, política ou científica que será expressada com “boa educação, bom senso e razoabilidade”. O intuito de muitas obras de arte é, precisamente, chocar e, com isso, provocar reflexão. Não se pode exigir de artistas que sejam centrados e comedidos, nem que justifiquem formas de expressão artística com “dados técnicos”.

Por último, a afirmação de que a proibição seria mais benéfica para a sociedade, para “acalmar ânimos”, parece compreender a sociedade brasileira como um bloco homogêneo, que teria uma vontade própria, e não como um amálgama de classes e credos muito diferentes que dificilmente concordariam em ser retratadas de modo tão unívoco. A ordem de proibição, na data em que veio, serviria para qualquer coisa menos acalmar os ânimos – por um lado, milhões de pessoas já assistiram ao vídeo (no ar desde 3 de dezembro de 2019); por outro, liberá-lo daqui a sabe-se quantos meses, quando o agravo fosse julgado, não teria o potencial de diminuir a desaprovação ao vídeo por parte de religiosos ou extremistas conservadores.

Brasília, 9 de janeiro de 2020. O ministro Dias Toffoli defere liminar pleiteada pela Netflix para suspender a decisão do TJRJ. Fazendo referência ao acórdão do Supremo Tribunal Federal na ação direta de inconstitucionalidade 4.451/DF (já comentado em edição anterior desta coluna), frisa que “’[o] direito fundamental à liberdade de expressão não se direciona somente a proteger as opiniões supostamente verdadeiras, admiráveis ou convencionais, mas também aquelas que são duvidosas, exageradas, condenáveis, satíricas, humorísticas, bem como as não compartilhadas pelas maiorias’ (Rel. Min. Alexandre de Moraes, DJe de 6/3/2019)”. Ainda, sublinha o fato – também destacado pela decisão do desembargador plantonista do TJRJ – de que a Netflix é um serviço de acesso controlado, e que repúdio ou aplauso à obra ficam a critério do espectador que decidir vê-la.

A polêmica, por certo, está longe do fim. Além de as decisões de Toffoli e Abicair neste específico recurso serem provisórias, e de haver a necessidade de colegiados tanto do TJRJ quanto do STF se manifestarem a respeito, ainda há diversos outros processos em curso, inclusive iniciativas de deputados para acionar o Ministério Público Federal e demandar explicações do serviço de streaming no Parlamento[6].

Scorsese, numa recente mesa redonda de diretores mediada pelo Hollywood Reporter[7], afirmou que o lançamento de A última tentação de Cristo foi o momento mais difícil de sua longa e premiada carreira. Não obstante as reações negativas, Scorsese recebeu uma indicação ao Oscar de melhor diretor pelo filme, e voltou a abordar a fé – e suas dúvidas e percalços – em obras como Silêncio (2016).

Para o Porta dos Fundos, por outro lado, o episódio parece estar tendo o chamado “efeito Streisand”[8] – expressão que tem origem na tentativa da cantora e atriz Barbra Streisand em remover fotos de sua mansão em Malibu da rede, o que só contribuiu para que elas fossem mais procuradas. A censura, além de ganhar manchetes no Brasil e no mundo[9], impulsionou as visualizações do vídeo, que se tornou a obra brasileira mais acessada da história da Netflix[10].

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[1] Veja-se, a propósito, notícia veiculada na época pelo New York Times: https://www.nytimes.com/1988/10/25/movies/police-suspect-arson-in-fire-at-paris-theater.html

[2] A decisão administrativa foi questionada judicialmente, mas confirmada pela Corte de Apelações de Santiago em 14 de março de 1989. Em 11 de novembro de 1996, já superado o regime de Pinochet, o Consejo de Calificación Cinematográfica reviu a decisão anterior e permitiu a exibição do filme no país. No entanto, um grupo de cidadãos católicos e a própria Igreja foram à Corte de Apelações de Santiago que, em 20 de janeiro de 1997, acolheu o pedido deles para proibir novamente a exibição do filme, em decisão confirmada pela Corte Suprema do Chile em 17 de junho daquele ano. Ainda em 1997, foi aberta uma reclamação perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos, que, em 5 de fevereiro de 2001, reconheceu que, ao proibir a exibição do filme, o Chile violou a Convenção Interamericana de Direitos Humanos no que concerne à liberdade de expressão. Em sua decisão, a corte afirmou que este direito se caracteriza não apenas pela possibilidade de expressão do próprio pensamento, mas também pela liberdade de buscar, receber ou difundir ideias de toda índole. Para a corte, a decisão do Judiciário chileno de proibir o filme após sua liberação administrativa implica censura, vedada pela convenção. Ainda, a corte afastou a alegação de que a proibição buscava preservar a liberdade religiosa, tendo em vista que o filme não “violou o direito das pessoas de conservar, mudar, professar e divulgar suas religiões ou crenças”.  O inteiro teor da sentença pode ser acessado, em espanhol, em: http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/Seriec_73_esp.pdf.

[3] A entidade recorrente resume o episódio da seguinte maneira: “Jesus Cristo é retratado como um homossexual pueril, namorado de Lúcifer, Maria como uma adúltera desbocada e José como um idiota traído por Deus” (TJRJ. 6ª Câmara Cível. Agravo de instrumento 0083896-72.2019.8.19.0000. Rel. Des. Benedicto Abicair, julg. 08.01.2020)

[4] O filme de Scorsese também se iniciava com um aviso. Após uma citação extraída do livro de Kazantzákis, lê-se: “Este filme não é baseado nos Evangelhos, mas sobre essa exploração ficcional do eterno conflito espiritual” (no original: “This film is not based upon the Gospels, but upon this fictional exploration of the eternal spiritual conflict”).

[5] TJRJ. 6ª Câmara Cível. Agravo de instrumento 0083896-72.2019.8.19.0000. Rel. Des. Benedicto Abicair, julg. 08.01.2020.

[6] São eles o deputado Pastor Isidório (Avante/BA) (https://bahia.ba/politica/ao-criticar-porta-dos-fundos-isidorio-cita-atentado-a-jornal-frances/) e o deputado Julio Cesar Ribeiro (Republicanos/DF) (http://blogs.correiobraziliense.com.br/cbpoder/pastor-deputado-federal-explicacoes-netflix-especial-do-porta-dos-fundos/).

[7] Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=4iLtjMwkOlg. A partir do min. 56, o diretor lamenta o fato de altas hierarquias da Igreja terem condenado o filme sem tê-lo visto, e que, ao rodá-lo, Scorsese buscava investigar o significado da fé.

[8] https://www.bbc.com/news/uk-18458567

[9] Veja-se, por exemplo, as repercussões no Washington Post (https://www.washingtonpost.com/nation/2020/01/09/brazil-comedy-group-firebombed-gay-jesus-judge-rules-netflix-remove-movie/), na Variety (https://variety.com/2020/tv/news/brazilian-judge-orders-removal-netflix-gay-jesus-christmas-comedy-special-1203461599/) e no New York Times (https://www.nytimes.com/reuters/2020/01/10/world/americas/09reuters-netflix-brazil.html).

[10] https://atarde.uol.com.br/entretenimento/noticias/2112811-cercado-de-polemica-especial-de-natal-bate-recorde-na-netflix