Ilustração: Vapor324

Certa ocasião, estava conferindo posts aleatórios no meu Facebook, quando recebi uma mensagem de uma amiga feminista, pedindo por ajuda. Ela estava participando de uma discussão em um grupo LGBT, debatendo uma pauta feminista em um post cheio de comentários masculinos – a maior parte deles, deslegitimando a tal pauta, ignorando ou silenciando os posicionamentos dela e de outras mulheres, de forma bastante agressiva. “Estou cansada”, ela me disse. E me mandou um pequeno texto, pedindo que eu, utilizando o meu próprio perfil, fosse até a discussão e colasse o texto lá. “Preciso que você faça esse comentário por mim, porque você é homem, e os homens se escutam”.

Fiquei um pouco espantado com o pedido, mas fui até o post, li as discussões e fiz o que ela pediu: colei o comentário que ela tinha escrito, como se fosse a minha própria opinião. E a reação ao meu posicionamento foi, digamos, surpreendente: o comentário teve uma quantidade razoável de “curtidas”, e respostas muito educadas. Alguns rapazes responderam agradecendo, porque aquele comentário, enfim, os tinha feito mudar de ideia; mesmo os que permaneceram discordando, fizeram isso de forma bastante educada e polida, sem nem uma parcela da agressividade que tinha sido destinada às mulheres feministas que estavam na discussão até então.

Intrigado com o ocorrido, fiz um post no meu próprio perfil relatando o que tinha acontecido, e para a minha surpresa, uma série de outras amigas feministas disseram que aquela era uma estratégia que elas usavam com alguma recorrência, sempre que se viam cansadas de debater suas próprias pautas com homens. “É horrível, mas sempre funciona”, comentou uma delas.

Falando, então, sobre liberdade de expressão, tema que nos interessa aqui no Dissenso: o que estas pequenas situações, que acabam se mostrando violentamente corriqueiras, podem nos fazer pensar? Levanto essa questão porque, a princípio, ninguém neste contexto diria que a minha amiga feminista estava tendo o seu direito a liberdade de expressão limitado. Do ponto de vista jurídico, acredito que se entenderia que ela estava no pleno exercício do seu direito – afinal, eu e ela tínhamos exatamente o mesmo acesso àquela discussão. Assim sendo, cabe provocar: se tínhamos, em tese, o “mesmo” direito à livre manifestação de pensamento, o que fazia com que a minha manifestação de pensamento, na prática, circulasse mais livremente que a dela? (Lembrando que, na situação em questão, o pensamento sequer era meu: eu apenas colei num comentário o texto que ela mesma me enviou).

A resposta mais óbvia, neste caso, é a questão do machismo, que a princípio poderia não ser diretamente associada ao debate sobre o direito à liberdade de expressão – daí a impressão de que tanto eu quanto a minha amiga estaríamos acessando nosso direito igualitariamente. Meu ponto é que, no sentido contrário, questões como o machismo – ou o racismo, ou a LGBTfobia, ou a desigualdade de classe – constituem questões de fundo que não podem escapar a esta discussão, por uma razão em particular: vivemos em uma sociedade desigual, em que não é possível debater nenhum direito em profundidade, se não considerarmos o fato de que essas desigualdades impactam diretamente o modo como os direitos são distribuídos e garantidos.

Falando especificamente do contexto da internet, o direito à liberdade de expressão já se mostra limitado quando cerca de 40% da população brasileira vive sem ter acesso à rede – estatística que sobe para mais de 70% quando observamos apenas as classes D e E. E mesmo quando consideramos os discursos que estão em circulação entre os que já são usuários, é possível observar com tranquilidade o modo como algumas “manifestações de pensamento” são vistas como mais possíveis que outras, sendo mais defendidas e protegidas – geralmente quando pertencem a vozes brancas, masculinas, heterossexuais, cisgêneras e de alto poder aquisitivo. Uma série de figuras, públicas ou não, recorrentemente se sentem no direito de expressar discursos de cunho marcadamente LGBTfóbico, machista ou racista, e disfarçam a violência das suas posições atrás do discurso de que é “só uma opinião”. Quando confrontadas, tais figuras reivindicam automaticamente o seu direito à “liberdade de expressão”, de forma quase absoluta, como se esse fosse um direito superior até mesmo à necessidade de respeitar a dignidade de um grupo de pessoas.

Do outro lado, quando minorias de modo geral se posicionam em relação às desigualdades de que são vítimas, não existe a mesma mobilização em defesa da liberdade de expressão desses grupos. Pelo contrário, militantes e movimentos sociais costumam ter as suas pautas recorrentemente deslegitimadas, e seus espaços de reivindicação e debate são constantemente boicotados, por diversos mecanismos: denúncias, ataques, perseguições. Não são raros os casos de páginas derrubadas, hackeadas, atacadas – e posso falar por mim mesmo: assim como vários outros criadores negros ou LGBTs com que tenho contato, já sofri tentativas de invasão no meu canal no YouTube, e já tive contas das minhas redes sociais bloqueadas por denúncias em massa, mesmo que o meu conteúdo não violasse padrões de comunidade.

Em um panorama como este, não é possível dizer que tenhamos um espaço público verdadeiramente democrático, nem que a internet tenha multiplicado tão magicamente a pluralidade de vozes na sociedade. Primeiro porque há ainda muitas vozes sendo silenciadas; e segundo porque, mesmo quando se manifestam, essas vozes ainda não são efetivamente escutadas. Desse modo, a simples “presença” delas nos garante nada mais que uma ilusão de democracia. Antes de entendermos a internet em si mesma como garantia de uma melhor distribuição do direito à liberdade de expressão, é necessário entender outras desigualdades sociais que fazem com que esse direito acabe não sendo igualitariamente distribuído, valorizado ou garantido. Em outras palavras, é necessário tratar o direito à liberdade de expressão como uma questão de política pública, e, mais ainda, como uma questão de política afirmativa.

Isso envolve dois desafios fundamentais. Primeiro, o de ampliar o debate a respeito dos limites do direito à liberdade de expressão, não para construir uma política de censura de discursos, mas para garantir que haja a devida responsabilização diante de discursos que promovam a violência ou a desumanização de certos grupos sociais – entendendo que, em última instância, esse processo de desumanização acaba sendo, ele mesmo, um entrave para que o direito à livre manifestação de pensamento seja garantido a todas as pessoas, sem distinção.

Segundo, e mais importante, também é necessário encontrar caminhos estratégicos e políticas efetivas que incentivem a democratização da comunicação, garantindo acesso de qualidade à internet para toda a população brasileira, e impulsionando uma real pluralidade de vozes e narrativas na internet e em outros meios de comunicação. Cito, neste sentido, iniciativas como o edital Comunica Diversidade, do Ministério da Cultura (que teve a sua última edição em 2014), ou o Prêmio Antonieta de Barros, do extinto Ministério da Igualdade Racial, que premiava projetos de jovens comunicadores negros.

Em síntese, é necessário entender que a luta pela plena garantia do direito à liberdade de expressão também passa pela superação do machismo, do racismo, da LGBTfobia e de todas as formas de desigualdade e violência que ainda imperam na estrutura da sociedade contemporânea. Sem isso, será impossível construir uma internet que seja efetivamente plural e democrática.