Imagem: SamueleGhilardi via Visualhunt / CC BY-NC-ND

O exercício da democracia assenta-se na “ideia-força de que quem quer que seja tem o direito de dizer o que quer que seja” e de que, por consequência, “não cabe ao Estado, por qualquer de seus órgãos, definir o que pode e o que não pode ser dito por indivíduos e jornalistas”.[1]

O direito que todos temos de dizer “o que quer que seja” não é, obviamente, ilimitado.  A Constituição Federal de 1988 (artigo 5º, IV) assegura a livre manifestação do pensamento e veda o anonimato, de modo a também garantir o direito de resposta e a operação de um sistema de responsabilidades (administrativa, civil e, por último, penal), caso o exercício da liberdade de expressão entre em choque com outros bens de personalidade também constitucionalmente protegidos, como a intimidade, a vida privada, a imagem e a honra.

Conforme decidiu o Supremo Tribunal Federal no julgamento da ADPF 130/DF, a calibração entre os dispositivos constitucionais se faz de forma temporal: assegura-se, primeiro, a liberdade plena de manifestação do pensamento para, somente depois, cobrar-se responsabilidade civil ou criminal por eventuais abusos.

Sob essa perspectiva constitucional, a tutela penal da honra realiza-se a posteriori, diante de ofensas já consumadas ao bem jurídico penalmente relevante.

Realiza-se ou deveria realizar-se? Eis a questão.

Em tempos de internet, um propalado potencial de disseminação de conteúdos ofensivos vem repetidamente justificando, no Judiciário, a subversão da ordem cronológica que deveria servir de baliza à ponderação desses direitos, assim como vem provocando o desvirtuamento dos fins do processo criminal dos crimes contra a honra quando as supostas ofensas ocorrem em ambiente virtual.

Decisões que determinam a remoção cautelar de conteúdos supostamente ofensivos da rede mundial de computadores têm sido uma constante nos inquéritos policiais e ações penais em andamento para a apuração de crimes de calúnia, difamação e, até mesmo, injúria.

Para além da remoção de conteúdos específicos tidos como aparentemente ofensivos, juízes criminais por vezes determinam a remoção cautelar de blogs, perfis, canais e páginas inteiras da internet, de uso dos acusados, sob a justificativa de que essas medidas têm o objetivo de prevenir a consumação de novas ofensas – como se fosse antecipado o caráter ofensivo de tudo o que vai se dizer ali.

É impossível compatibilizar essa alegada cautelaridade com a garantia de não intervenção estatal prévia nas manifestações do pensamento. Impossível compatibiliza-la, ainda, com o princípio da mínima intervenção do direito penal e com o princípio da presunção de inocência.

Sob o aspecto estritamente processual, há que se questionar, também, a legalidade dessas decisões frente à taxatividade das medidas cautelares penais e à ausência de instrumentalidade entre tal sorte de provimento cautelar e o provimento final.

Inexiste previsão em lei processual penal de qualquer medida cautelar limitadora da liberdade de expressão, e o princípio da legalidade – que rege não apenas os delitos e as penas, mas todo o mecanismo de repressão estatal – não autoriza juízes criminais a inovarem para restringir esse ou qualquer outro direito dos acusados no curso da persecução. Como adverte Antonio Magalhães Gomes Filho, “não se pode cogitar em matéria criminal de um poder geral de cautela, em razão do qual o juiz possa impor ao acusado restrições não previstas expressamente pelo legislador, como sucede no âmbito da jurisdição civil”[2].

Inexiste, também, acessoriedade e instrumentalidade entre a remoção cautelar de conteúdos da internet e o provimento final do processo penal. Longe de assegurar tal provimento, essas medidas encerram um fim em si mesmas: o controle, pelo Poder Judiciário (antes do exaurimento do contraditório e da ampla defesa sobre um fato determinado e supostamente ilícito), daquilo que os acusados podem ou não dizer publicamente.

Cala a boca já morreu? Na esteira do julgamento da ADPF 130 pelo Supremo Tribunal Federal, proliferam nos juízos de primeiro grau decisões que fazem do processo criminal instrumento de censura, antecipando a proteção à honra em detrimento da liberdade de manifestação do pensamento.

A inversão dos valores abala um dos pilares da nossa tão frágil democracia. Espera-se que as instâncias superiores do Judiciário tratem de conter o retrocesso e não permitam que a censura seja tratada como um dado corriqueiro do processo penal.

[1] STF, ADPF 130/DF, Rel. Min. Carlos Ayres Britto, DJ 06.11.2009.

[2] “Medidas cautelares e princípios constitucionais: comentários ao art. 282 do CPP, na redação da Lei 12.403/2011”. In: GOMES FILHO, Antonio Magalhães… (et al.), FERNANDES Og (coord.), Medidas cautelares no processo penal: prisões e suas alternativas: comentários à Lei 12.403, de 04.05.2011, p. 18.